“Falta coragem” ao Conselho Europeu para ir mais longe na protecção do Estado de direito

Apesar de precisarem de ser revistos, há mecanismos para garantir que os Estados membros cumprem os valores previstos nos tratados. Como o caso da Hungria tem mostrado, nem sempre se dão os passos disponíveis para o garantir.

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Viktor Orbán é primeiro-ministro da Hungria desde 2010, cargo que já ocupara entre 1998 e 2002 Reuters

Foi há pouco mais de um mês que a presidente da Comissão Europeia descreveu um projecto de lei aprovado pelo Parlamento de Budapeste como “uma vergonha”: a lei, “que discrimina claramente as pessoas pela sua orientação sexual”, “vai contra os valores fundamentais” da União Europeia, “a dignidade humana, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos”, sublinhou Ursula von der Leyen, num discurso de uma dureza pouco comum – o tom viria a repetir-se, dois dias depois, numa sessão extraordinária do Conselho Europeu.

Já no fim de Julho, o executivo da UE divulgou o seu segundo relatório anual sobre a situação do Estado de direito na UE, um novo instrumento de monitorização. Como esperado, a Polónia e a Hungria são os países onde as falhas são maiores e motivam mais preocupações.

Se os valores que estiveram na base da fundação da UE têm estado no centro do debate europeu muito por causa da Polónia e da Hungria, a verdade é que há cada vez mais governos a pisar consecutivos riscos. Exemplo disso é o primeiro-ministro da Eslovénia, Janez Jansa, que mal assumiu a presidência do Conselho da UE, sucedendo a Portugal, fez questão de afirmar que é contra a imposição de “valores imaginários europeus à Hungria”, enquanto pressiona ele próprio o sistema judicial esloveno ou promove perseguições a jornalistas independentes.

Para além das críticas da Comissão e do Conselho, a lei húngara motivou a aprovação, pelo Parlamento Europeu, de uma resolução de condenação onde se pedia à Comissão para lançar um processo de infracção por discriminação contra a Hungria. Já a 15 de Julho, Von der Leyen confirmou a abertura desse processo (e de um contra a Polónia) por violação dos direitos das pessoas LGBTIQ. Em vez de recuar, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, insiste que é a Hungria que está sob ataque e decidiu referendar a polémica lei, numa consulta prevista para o início de 2022.

Se entrar na união implica o cumprimento do Estado de direito – medido através das exigências políticas dos Critérios de Copenhaga –, o que fazer com países que depois de aderirem deixam de agir tendo em conta “os valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das minorias”, inscritos no artigo 2º do Tratado da UE?

Ameaças e desafios

Poderes e ferramentas existem, a começar pelo Artigo 7º do Tratado da UE (que define as medidas preventivas e o mecanismo de sanções a accionar contra um país violador) e outros mais recentes, como o mecanismo de condicionalidade, aprovado no final de 2020 (depois de tensas negociações com a Hungria e a Polónia), que permite suspender o acesso dos fundos do orçamento europeu em caso de falhas na protecção destes valores – é isto que a comissão de Controlo Orçamental do Parlamento Europeu tem pedido que seja feito com a Hungria.

Muitos dirão que os mecanismos de escrutínio e procedimentos previstos não têm funcionado, e que só isso permite que os prevaricadores se mantenham desafiadores. Poucos dias depois de conhecer o novo procedimento de infracção contra o seu país, Orbán fazia publicar um decreto onde se afirma que não aceitará o dinheiro do fundo de recuperação europeu se isso implicar ceder perante Bruxelas na polémica lei.

Direitos “inegociáveis”

“E se não houvesse União Europeia teríamos, estou absolutamente convencido, uma degradação muito maior do Estado de direito em todos os países membros, porque há sempre violaçõezinhas em todos, em Portugal também, não são um exclusivo de alguns”, afirma José Manuel Fernandes, eurodeputado social-democrata.

Para o político português, membro do Parlamento Europeu desde 2009, não deixa de incomodar que seja sequer preciso discutir o Estado de direito. “O respeito do Estado de direito não é uma opção, é uma obrigação”, afirma. “Reparem bem o cúmulo a que chegámos: fizemos um regulamento que condiciona o acesso ao orçamento da UE no caso de não haver o respeito do Estado de direito… É o nosso acervo comunitário, são os tratados, é o Artigo 2º, é o respeito pela democracia, pela separação de poderes, pela liberdade, pelos direitos fundamentais e esses direitos são inegociáveis… Não são referendáveis sequer.”

Enquanto membro da comissão de Orçamento e de Controlo Orçamental, o eurodeputado eleito pelo PSD defendeu o mecanismo de condicionalidade mas não foi por gostar da sua existência. “Um país rico até poderia vir dizer, ‘olhe, pronto, nós não recebemos, e portanto violamos o Estado de direito’. Como se se pudesse violar o Estado de direito a troco de uma espécie de uma multa…”, explica. “Mas não há outra alternativa neste momento por causa da inoperância e falta de coragem no Conselho.”

“No rule of law, no money”

“Como dizia um cartaz: ‘No rule of law, no money’, e esta é uma linguagem que os autocratas e os poderes mais musculados geralmente percebem e perceberão muito bem o peso que o mecanismo de condicionalidade poderá ter”, diz Isabel Santos, eurodeputada eleita pelo Partido Socialista. “É preciso proteger o orçamento da UE do uso abusivo por parte de alguns poderes e sabemos o quanto os poderes iliberais avançam e contaminam tudo à sua volta. É preciso garantir que com os nossos impostos não financiaremos regimes que violam o Estado de direito, regimes que não são democráticos.”

Isabel Santos vê por isso “com alguma expectativa este mecanismo” de condicionalidade, mas “é a expectativa de quem agarra uma tábua de salvação”. Concordando que “a aplicação do Estado de direito não é opção e não é uma moeda de troca”, a eurodeputada lamenta “o imbróglio em que o funcionamento do Artigo 7.º se vê enredado”. Um “imbróglio” que a eurodeputada acredita só poder resolver-se através da revisão da sua aplicação, o que implicaria “uma revisão dos tratados de funcionamento da União Europeia”, que não se avizinha.

Como em tantas outras matérias, o facto de ser precisa a unanimidade para tomar uma decisão sobre as violações com base no Artigo 7º tem servido de pretexto para nem sequer pôr em marcha o processo – o Estado membro em causa não participa nas votações, mas a Hungria e a Polónia concordaram há muito que um assegurará a defesa do outro.

Mas, como lembra José Manuel Fernandes, “só nas medidas sancionatórias é que se exige unanimidade, na parte preventiva – e isso já era fortíssimo – bastam quatro quintos dos Estados membros para se declarar que um Estado membro está a violar o Artigo 2º do Tratado”. O que explica então que não se avance agora contra a Hungria?

“O Conselho não está a fazer a sua parte, em particular quando falamos do Artigo 7º tem havido falta de coragem”, acusa José Manuel Fernandes. A denúncia de “hipocrisia e complacência” é geral, e o eurodeputado nem ataca a presidência portuguesa do Conselho da UE por não ter iniciado o processo. “A presidência portuguesa e as outras todas são muito parecidas nessa matéria”, diz.

O que se fez durante a presidência portuguesa foi realizar novas audições da Polónia, a quarta, e da Hungria, a terceira, por procedimentos abertos há anos, audiências que tinham sido várias vezes adiadas, em parte por causa da pandemia, lembra Isabel Santos. Parece pouco, até pode parecer muito quando se olha para o contexto, diz a eurodeputada, um contexto onde a “falta de coragem e o excesso de realpolitik têm condenado o funcionamento do Conselho”.

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