Cancro, um desafio societal

Para que possamos continuar a trilhar o caminho certo, é essencial criar os mecanismos (financeiros e outros) necessários para quem estuda, investiga, diagnostica e trata doentes com cancro.

Em 2020, terão sido diagnosticados em todo o mundo cerca de 19 milhões de novos casos de cancro, e terão morrido cerca de dez milhões de pessoas de cancro. Anualmente, na União Europeia (27 países) cerca de três milhões de pessoas são diagnosticadas com cancro e 1,3 milhões morrem de cancro. A frieza dos números quase esconde o peso societal que o cancro representa, para os doentes, para as suas famílias, para os sistemas de saúde, para a economia.

Há 50 anos, em Dezembro de 1971, foi aprovado e assinado no Congresso dos EUA um acordo (designado por National Cancer Act, Lei Nacional para o Cancro) que se tornou popularmente conhecido como a declaração de “Guerra ao Cancro” pelo – na altura – Presidente Nixon.

Esse complexo, inovador e arrojado acordo tornou possível, através de financiamento robusto (aproximadamente 9000 milhões de dólares, em valores actuais), a criação de infra-estruturas de investigação e tratamento do cancro que viriam a formar a incontornável rede de National Cancer Institutes (NCI; Institutos Nacionais para o Cancro). Esses institutos são, actualmente, alguns dos mais importantes centros de investigação do cancro a nível mundial, tendo servido de incubadoras a descobertas científicas fundamentais sobre a biologia do cancro (com vários prémios Nobel nos seus quadros) e contribuído para melhorar de forma muito significativa o diagnóstico e o tratamento de vários tipos de cancro.

O entusiasmo que a “Guerra ao Cancro” gerou continua nos NCI e em inúmeros centros de investigação e hospitais nos EUA e no resto do mundo, presente na mente de todos os que investigam, diagnosticam e tratam os diferentes tipos de cancro. Os avanços mais recentes ao nível da investigação dos mecanismos moleculares essenciais para alguns tipos de cancro, desde o diagnóstico que emprega inovadores métodos de imagem ou de classificação genómica à imunoterapia (para citar apenas alguns), trazem sinais de esperança para as populações.

No entanto, também sabemos que há um desconhecimento grande sobre a interacção de cada cancro com o seu hospedeiro (a noção de “um cancro, uma pessoa”) e dos mecanismos que explicam o “adormecimento” e o “re-acordar” de células disseminadas (doença metastática), entre vários outros processos que carecem de explicação científica sólida. E consequentemente, de abordagens terapêuticas eficazes.

No início de 2020, reconhecendo o problema que o cancro representa, a Comissão Europeia lançou um conjunto de iniciativas globalmente denominadas por “Beating Cancer Plan” (plano de eliminar, ultrapassar ou combater o cancro na Europa).

Nesse plano, financiado por 4000 milhões de euros, há quatro eixos fundamentais que suportam e permitem entender os objectivos a alcançar. A saber, o plano de combate ao cancro promove actividades e projectos que visem: compreender (investigar mais e melhor o cancro); prevenir (cerca de 40% dos cancros são evitáveis); tratar (desenvolver tratamentos personalizados e mais eficazes); melhorar a qualidade de vida dos doentes com cancro; e garantir o acesso equitativo a melhores métodos de diagnóstico e tratamento do cancro a todos os cidadãos europeus. É um plano decisivo, pragmático e actual, que ambiciona reduzir para metade as mortes por cancro na União Europeia, até 2030.

Este programa confirma e reforça a necessidade de fazer “mais e melhor” nas áreas de investigação, do diagnóstico e de tratamento do cancro. Obviamente, todo o esforço, todo o apoio é necessário e essencial. É também legítimo esperar que os mecanismos, nomeadamente financeiros, criados por este plano possam fortalecer as instituições científicas e de saúde (e o trabalho dos seus profissionais), fragilizadas por anos de opções estratégicas governativas de visão curta ou imediatista.

Mas um aspecto fundamentalmente inovador deste Plano de Combate ao Cancro é o objectivo de transformar a cancer culture (cultura do cancro, ou seja, a forma como o cancro é compreendido) dos cidadãos europeus. Noutras palavras, pretende-se envolver a sociedade na compreensão e na resolução de um problema verdadeiramente transversal. Uma comunicação séria, cientificamente sólida e feita de forma clara e concisa, é essencial para atingir esse objectivo.

Nos dois exemplos de programas políticos escolhidos e brevemente descritos, para além do recurso (questionável) a linguagem bélica (“guerra”, “combate”), sobressai a vontade, o desafio, de compreender este conjunto vasto de doenças que representa, há séculos, um dos maiores enigmas da biomedicina. Para que tal seja possível, para que possamos continuar a trilhar o caminho certo, é de facto essencial criar os mecanismos (financeiros e outros) necessários para que o trabalho desenvolvido por quem estuda, investiga, diagnostica e trata os doentes com cancro seja amplamente reconhecido e compreendido pelos cidadãos.

Urge tornar o cancro um assunto, um desafio societal. De todos, para todos.

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