O luto dos que amam Abril

Como pode morrer o estratega do 25 de Abril e não ser decretado luto nacional? Que tacticismo político poderá permitir que, sendo governados nos últimos seis anos pela esquerda, não se queira declarar luto nacional?

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EPA/MIGUEL A. LOPES

Até à madrugada de 25 de Abril de 1974, Portugal viveu quase 50 anos de servidão, em que os portugueses estavam agrilhoados à “pequenez”, essa fatal condição deste rectângulo à beira-mar plantado que se reconhecia “orgulhosamente só” contra o respeito pelos Direitos Humanos, contra a Democracia, contra a Liberdade. Naquela madrugada, pela acção dos Capitães de Abril, Portugal rompeu com o fatalismo e esperou ser maior, arejado, progressista. Não mais prisão dos homens, mas terreno fértil para que o humano pudesse ser mais humano.

Quase 50 anos passados, a “pequenez” parece teimar em persistir. Institui-se a democracia, consagraram-se as liberdades. Entramos na Europa. Generalizou-se a educação e abrimo-nos ao mundo. Somos, hoje, um país moderno. Mas a “pequenez” nas cabeças parece continuar. Como pode morrer o estratega do 25 de Abril e não ser decretado luto nacional? Que tacticismo político poderá permitir que, sendo governados nos últimos seis anos pela esquerda, não se queira declarar luto nacional? Nem por respeito à própria epopeia colectiva do povo português? Nem por simples gratidão? Ainda que não se concorde com tudo. Ainda que existam luzes e sombras (como é próprio daqueles que não se julgam acima da natureza humana).

Há alguns anos declaram-se três dias de luto nacional pela morte de um jogador de futebol. Não me interessa reflectir aqui se essa homenagem era merecida ou não. Porque todas as comparações realizadas com esse intuito são mesquinhas. Se o país resolveu assim proceder na altura, fez bem. Tal como o fez, quando, anos mais tarde, concedeu honras de panteão. Mas será um jogador de futebol mais relevante para a nossa História colectiva do que um Capitão de Abril que – repito, porque nunca será demais repeti-lo – arriscou a própria vida para que eu hoje pudesse estar a escrever estas linhas, para que eu hoje pudesse ser livre?

Pobre país que não consegue reconhecer prioridades e se entretém pela espuma dos dias. Declarar luto nacional pela morte de Otelo Saraiva de Carvalho impunha-se. Não pela pessoa singular. Mas pelo símbolo. Em Otelo está o desassossego empreendedor de um povo que não se conforma com a mediocridade. Estão, também, as suas falhas e tropeções nesse desejo intenso de uma realidade diferente, em que, finalmente, a “pequenez” que nos teima em fazer “pequenos” se fosse. Em Otelo está a coragem e a capacidade de desafiar o fatalismo, concretizando o que muitos sonhavam mas que poucos ousaram fazer. Está, igualmente, a humanidade ferida que hoje – parece – não queremos reconhecer, preferindo a superficialidade à profundidade (sempre imperfeita) do humano.

Há uns anos, o Presidente da República pediu um parecer jurídico para não ter que retirar as condecorações nacionais que o país tinha atribuído a um outro jogador de futebol, entretanto condenado a quase dois anos de prisão com pena suspensa por fuga aos impostos. É incrível que o mesmo Presidente que salva as condecorações de um condenado judicial em nome do interesse nacional, não compreenda, agora, que o mesmo interesse nacional (se não um outro bem mais importante) impõe que se declare luto nacional pela morte de Otelo. Eis um exemplo do populismo que tanto queremos combater e acabamos a reforçar. Da tal “pequenez”.

Tenho 33 anos. Não vivi a madrugada do dia 25 de Abril. Sou de esquerda. Mas não me revejo em qualquer acção que personifique um radicalismo alienante. Todavia, consigo perceber a importância de Otelo. No que é, não no que seria ideal que fosse. Eu faço luto cívico pelo seu desaparecimento, como farei por qualquer outra pessoa que lutou (e luta) contra o fascismo para que eu possa ser mais livre. Tenho pena que o país em que vivo, e de que também sou cidadão, não o queira fazer. Mas com ou sem luto oficial: Otelo, obrigado!

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