Simone Biles: “Quando estava no ar, não sabia onde estava. Podia ter-me magoado”

Chamada a ser a grande figura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, Simone Biles já abdicou de duas das seis finais que iria disputar. Irá voltar?

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Simone Biles Reuters/DYLAN MARTINEZ

Na lista das 24 qualificadas para a final do all-around da ginástica artística feminina nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ainda aparece um nome que nos habituámos a ver como o número um e que está nesta lista como a primeira das apuradas. Mas a única certeza que temos neste momento é que Simone Biles não estará nessa final. A melhor ginasta de todos os tempos já se tinha retirado da final por equipas, retirou-se agora da final individual que lhe dera uma das suas medalhas de ouro há cinco anos, no Rio de Janeiro. E não se sabe o que irá acontecer nos próximos dias.

Havia uma certeza para estes Jogos de Tóquio, onde muita coisa tem corrido mal. Simone Biles iria ser o rosto sorridente e luminoso que ofuscaria tudo o resto. Nenhum dos outros 11 mil atletas presentes na capital japonesa – nenhum dos basquetebolistas da NBA, nem Novak Djokovic ou qualquer deus das piscinas ou do atletismo – tem o apelo global e o carisma de Simone Biles, sobretudo desde que se retiraram Michael Phelps e Usain Bolt. Desde o Rio 2016, que estávamos à espera disto. Tóquio seria a confirmação da lenda. Simone, a perfeita. Era assim que ficaria cristalizada na memória colectiva do mundo.

Sem qualquer surpresa, a perfeição tem um preço. E Simone Biles sentiu o peso do mundo nas costas, disse que estava a lutar contra demónios, que sentia medo. Quando estava na final por equipas, alterou o que tinha planeado no cavalo quando estava no ar e ainda aterrou mal.

“Quando estava no ar, não sabia onde estava. Podia ter-me magoado”, confessou pouco depois. Não havia ninguém na ginástica com maior noção do seu corpo enquanto voava e era por isso que era muito melhor do que as suas adversárias.

A dúvida gera medo e o medo é paralisante numa disciplina em que, para todos os efeitos, as ginastas arriscam muito – e quanto mais arriscarem, mais pontos recebem.

Tentar o pleno

“O cérebro e o corpo ficam desconectados. Imaginem que estão a fazer pára-quedismo e o pára-quedas não abre. O cérebro quer fazer a rotina planeada, mas o corpo tem vontade própria”, explicou à BBC Christina Myers, treinadora e antiga ginasta.

O que vemos na ginástica olímpica é o resultado final de anos de preparação intensa, de condicionamento físico e mental, de repetição para criar a memória muscular e chegar ao praticável e só haver perfeição. Simone Biles faz isto desde os 13 anos (tem 24) e não tem sido nada menos do que perfeita. Uma combinação de talento natural, graciosidade, potência muscular e coragem fez dela uma ginasta à parte, não apenas entre as suas contemporâneas, mas de toda a história da modalidade.

Os títulos que conquistou contam parte da história. Em Mundiais, foram 25 medalhas, das quais 19 são de ouro, um recorde entre homens e mulheres. E nos Jogos Olímpicos (só competiu no Rio) foram quatro títulos e uma medalha de bronze. Iria tentar em Tóquio fazer um inédito pleno, o de ganhar todas a finais individuais e a final por equipas, consolidando o seu lugar na história dos Jogos.

A outra parte da história, já sabíamos alguma coisa há cinco anos, mas fomos sabendo mais nos últimos tempos. Simone Biles foi abandonada por uma mãe toxicodependente e passou parte da infância em lares de adopção, antes de encontrar o seu lugar no mundo através da ginástica.

Depois dos Jogos do Rio, ficámos a saber que também ela foi uma das muitas vítimas de Larry Nassar, o médico que abusou de centenas de ginastas que eram entregues ao seu cuidado e que durante anos foi protegido pelo silêncio de muita gente, incluindo os Karolyi, o casal romeno que mandou na ginástica dos EUA durante décadas.

Logo ao primeiro dia algo pareceu mal. Nas qualificações, e sempre com as câmaras focadas nela, Simone Biles cometeu erros incaracterísticos nela e a sua linguagem corporal não eram de alguém na plena posse da sua confiança. Ainda assim, qualificou-se para todas as finais e iria ser a chave da equipa norte-americana para manter o título colectivo pelos terceiros Jogos consecutivos. Sem Biles, que ficou de fora a apoiar, as americanas perderam para as russas.

Simone Biles não irá ao all-around e resta saber o que irá acontecer nas restantes finais individuais: cavalo e paralelas assimétricas a 1 de Agosto; solo a 2; trave a 3. Em toda a sua carreira, fez tudo o que lhe pediam, mas em Tóquio a decisão será apenas dela.

Se a sua decisão for desistir, também será preciso coragem, mas já ninguém lhe tira o mérito de relançar a discussão sobre a saúde mental dos atletas (já amplamente discutida após gigantes como Michael Phelps ou Naomi Osaka terem tornado público as suas lutas contra a depressão), obrigados a suprimir a sua própria individualidade em função de uma competitividade que se julga ser o bem maior.

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