A queda do ensino: das metas curriculares às aprendizagens essenciais

A definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, assumida no Despacho n.º 6605-A/2021, de 6 de julho, na realidade é a machadada final.

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Com este despacho, são revogados todos os programas e metas curriculares vigentes: do 1.º ao 12.º ano Nelson Garrido

Temos assistido impotentes a um desmantelamento total do Sistema Educativo, por parte daqueles que mais apregoam a defesa da Escola Pública, a defesa dos mais desfavorecidos. A machadada final foi o mais recente Despacho n.º 6605-A/2021.

Com este despacho quis o Governo proceder “à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa”. Já lá irei.

Já lá irei, porque não quero deixar de referir que o atual governo tem tido um modus operandi não recomendável, para não dizer pior. Um facto é que a maior parte dos decretos de lei e despachos de importância extrema, que alteram estruturalmente as diretrizes da tutela, é apresentada no verão, de fininho, como diz Santana Castilho, durante a época de exames, de fecho de ano letivo e a decorrerem fases importantes do concurso de professores.

Retomando a análise do despacho percebemos que a definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular na realidade é a machadada final. Com este despacho, o secretário de Estado João Costa revoga todos os programas e metas curriculares vigentes, do 1.º ao 12.º ano. A partir de dia 1 de setembro passam a constituir-se como referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa, os seguintes documentos curriculares:

a) O Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, homologado através do Despacho n.º 6478/2017, de 9 de julho;

b) As Aprendizagens Essenciais, homologadas através dos Despachos n.os 6944 -A/2018, de 18 de julho, 8476 -A/2018, de 31 de agosto, 7414/2020, de 17 de julho, e 7415/2020, de 17 de julho;

c) A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania;

d) Os perfis profissionais/referenciais de competência, quando aplicável.

Atente-se às datas dos “manuais” referidos. Todos pelo verão. Se juntarmos a data do Decreto-Lei 55/2018, que se refere à gestão e flexibilidade curricular, e o Decreto-Lei 54/2018, que estabelece o regime jurídico da educação inclusiva, ambos de 6 de julho, temos um governo que age na sombra quando quer estruturalmente alterar as regras e propagandeia em conferências de imprensa, mesmo que depois nada que foi publicitado se cumpra.

Com este despacho, a desatualização de milhares de livros já editados — e muitos até já selecionados para o próximo ano letivo — será uma realidade. Há também o facto de este despacho ter passado despercebido a muitas escolas, devido à data em que foi publicado, e só em setembro, a poucos dias das aulas começarem, os professores poderão planificar seguindo as diretrizes dos novos referenciais.

Mas o pior nem é esses entraves! O grave da situação é que com este despacho instalou-se nas Escolas Públicas em Portugal a Educação Mínima, como disse, e bem, Paulo Guinote.

Com o chavão da inclusão, repetido até à exaustão, foi este governo destruindo a Escola Pública. Pelo verão, destrói através de despacho e leis; nas sessões de propaganda, anuncia milhões e programas temporários que em nada resolvem os problemas reais das escolas.

A Escola Pública e as suas virtudes estão constantemente nas bocas daqueles que nela não investem, que dela fazem um espaço de entretenimento, onde há uma verdadeira via verde para a transição e aprovação, onde os professores são meros burocráticos, perdendo horas a preencher grelhas de monitorização, de progressão, de avaliação, relatórios de sucesso/insucesso e em muitos casos até matrículas de alunos são chamados a fazer, diminuindo a real função para os quais são remunerados. Ensinar!

Os mesmos que querem condenar todos aqueles que não podem pagar uma qualquer escola privada, pois até os contratos de associação foram cancelando sem critério desde que chegaram ao poder, que têm demonstrado um enorme desrespeito pela classe docente, ignorando os seus pareceres e não devolvendo o tempo de serviço que haviam prometido em eleições, pelos pais contribuintes, e não só, e sobretudo pelos alunos que frequentam as escolas públicas, são os que mais dizem defendê-la em praça pública sem o mínimo pudor.

O sacrificar das aprendizagens de uns não pode ser o método de inclusão de outros. À custa da pseudo-inclusão o governo está a criar uma escola para os pobres, mínima, sem rigor, sem exigência e as outras, privadas, para quem pode. A mediocridade está assim garantida para todos, inclusão, os que não terão alternativa que são naturalmente os mais desfavorecidos.

Será que o caminho é mesmo a igualdade de oportunidades nivelada rasteirinha? Os pais e encarregados de educação, que terão de se conformar com o que o Estado lhes serve, irão mesmo permitir? Estarão a par de tal insensatez?

Fará sentido que os alunos transitem, com tantas negativas como dedos de uma mão, e tantas faltas quanto as horas da disciplina, claro está desde que não seja na disciplina de Cidadania?

A recuperação das aprendizagens deixará de ser um termo com sentido, deixamos de recuperar, o melhor é que nem sequer constem como sendo aprendizagens.

A quem servirá a construção de uma escola com cada vez menos conhecimento, conformada com a pequenez, com o poucochinho?

Não tínhamos já graves problemas estruturais que podiam bem ser resolvidos, aproveitando o Plano de Recuperação e Resiliência? Sim, mas optou-se, porque é disso que se trata, pelo caminho mais fácil. Baixar a fasquia é desde 2015 o mote deste governo, promover a deterioração das cada vez menores aprendizagens.

Deveria ser da inteira responsabilidade da escola promover o máximo das potencialidades de todos os seus alunos, independentemente da sua origem socioeconómica, pois é paga por todos nós, mesmo que alguns prefiram não a frequentar. A escola deve ser a principal promotora do conhecimento, com currículos exigentes e estruturados fazendo jus a uma das suas funções mais importantes, a de elevador social. Assim, como tem sido orientada, está apenas a promover a desonestidade, os alunos passam sem saber, não estimula a inteligência, não há desafios, não democratiza os saberes, quem quiser mais do que as “essenciais” terá de pagar, não desenvolve as capacidades individuais e proporciona uma alegria fugaz em vez de felicidade duradoura.

A escola pública atingiu o ponto em que a sua função de elevador social apenas funciona no sentido descendente, porque como se sabe uma grande parte dos alunos que frequentam a escola pública vêm de meios socioeconómicos mais desfavorecidos, em simultâneo, felizmente e por enquanto, com muitos outros que também a frequentam. Ao oferecer este serviço de apenas aprendizagens essenciais, está a separar os ricos dos pobres. Estes últimos sujeitam-se ao que o Estado lhes dá, os primeiros optam pelo ensino privado para evitar que os seus filhos não aprendam e por consequência “desçam”. É a total inversão do papel social e pedagógico da escola.

Surpreende-me que à saída deste despacho que, em jeito de machadada final, elimina todos os programas dos ensinos básicos e secundário passe sem provocar um alerta nacional. Estranho que ninguém no poder político em oposição ao governo reaja a este ataque vil à escola pública. Como é possível que se deixe passar tamanha insensatez sem que haja um debate sério sobre estas questões?

É possível porque o timing é, apesar de habitual neste governo, perfeito. Cheira a férias, o tempo está quente a praia chama por todos nós, a pandemia sanitária está “controlada” (no verão, o vírus tira umas férias; foi assim também o ano passado) e, em setembro, logo se verá.

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