As lágrimas

Os desgostos de amor, súbitos.

Foto
"O amor, essa Marginal sem fim" Mag Rodrigues

Talvez fossem duas da manhã. As horas tornam-se incertas quando somos cavalgados por uma dor absurda que não se aloja dentro de nós. Escrevo e digo isto com um sorriso. O tempo passa e as dores tornam-se pequenas. Mirram com tudo a que demos lugar a seguir. Se decidimos que queremos abrir os braços ao que se segue, torna-se mais fácil.

Talvez não fossem sequer duas da manhã mas Sérgio sabia a que horas teria o primeiro comboio para casa. Faltava tanto! Faltava tanto que na confusão e nos atropelos do tempo em que os podíamos ter na rua, eu decidi: vou levar-te a casa de táxi. Parecia uma loucura nascida de uma noite de copos mas os copos nem tinham acontecido.

Eu tinha vivido um pequeno desgosto de amor daqueles que pensamos não repetir com a idade a avançar, daqueles que fazem com que os amigos perguntem: “achas que não te vais magoar?” E, na verdade, quem pode responder? Nunca os próprios. Os próprios só podem dizer: tenho de viver isto e o resto logo se vê… e, sim, mil vezes estar a limpar as lágrimas depois de ter vivido, do que não ter por que chorar.

Duas e pouco da manhã, eu e Sérgio, um amigo doce e meigo que tinha sempre as palavras certas no canto da boca e ao centro do coração, apanhámos um táxi. Eu disse ao homem do volante para irmos até Carcavelos: “pela Marginal”.

Levei Sérgio a casa. Deixei-o com um abraço e um agradecimento que ficou para a vida. Há pessoas que marcaram momentos em dias vagos enchendo-os de qualquer coisa. Dando-lhes corpo, amor, um destino, uma razão.

Um abraço e estava de volta a Lisboa no mesmo táxi pela mesma Marginal. Na rádio uma lista de canções indistintas não trazia qualquer rumo à noite. As pessoas querem é ter algum barulho de presença, um ruído sem sentido que as faz sentir acompanhadas. Às vezes é assim nas relações: os outros são esse ruído que “faz companhia”. Uma presença apenas.

Pedi ao homem do táxi que desligasse a rádio e perguntei se podia ouvir as canções que ali tinha. O homem emudeceu e eu vi nisso, um sim. Foi indiferente. Ele queria ganhar a viagem e eu também. Nessa altura, depois do desgosto que vivera, era o álbum Carrie and Lowell de Sufjan Stevens que ouvia todos os dias. A todas as horas e agora também de madrugada na Marginal.

Quando as canções rasaram a maré, deixei-me começar a chorar. É uma sensação estranhamente libertadora estar num carro de onde nunca mais me lembrarei: da cara do condutor, do cheiro, da matrícula e sentir um conforto súbito por poder desapertar o cinto de segurança que me segurava as emoções ali por um triz. Quando vivemos desgostos destes, súbitos, pequenas coisas farão com que a voz trema e as lágrimas caiam sem controlo. O embaraço da emoção no embate com a razão. Chora-se por isto menina? Nunca ninguém me chegou a dizer tal coisa e eu chorei o caminho todo até chegar a casa, até as canções serem uma espécie de manto que me cobrem de um vazio que não se sabe onde começa e, sobretudo, quando vai acabar.

Cheguei a casa, desliguei o telemóvel, paguei a longa viagem que tinha feito o homem ganhar a noite e a mim, sem saber, arrumar qualquer coisa que não se acomodava antes. A dor não se acomoda quando queremos, quando achamos que estamos prontos, a dor acomoda-se quando um dia olhamos para trás e concluímos: talvez tenha sido naquele dia. Às vezes nem sabemos precisar em que dia foi.

Passou. Um alívio que deu lugar de novo à esperança. São isso os desgostos. Alívios que dão lugar a janelas de onde voltamos a ver caras e vidas e novas canções e até viagens.

Aquela viagem pela Marginal arrumou-me. Não trouxe respostas porque às vezes nunca as teremos mas deu-me a catarse impensável num táxi de onde as canções saíam roufenhas e indistintas.

Foi uma sorte poder escolher: a música, o caminho, até chorar perante um estranho que não usava o retrovisor.

O amor, acredito, até o escolhemos também. Os desgostos é que não, mas a forma como saímos deles está sempre nas nossas mãos.

Costumamos descobrir mais tarde.

O amor, essa Marginal sem fim.

Sugerir correcção
Comentar