Vacinas anticovid-19: 557 dias e 17.173 mortes atribuíveis depois, para quando uma requisição civil ao Infarmed?

Não é só uma questão de solidariedade internacional, é também uma questão de soberania que se proceda ao levantamento excepcional das patentes. As vacinas são já um bem público global.

Mesmo para quem não acredita que a sobrevivência da espécie humana depende de responsabilidade recíproca, é do seu próprio interesse que a África do Sul e a Índia possam adaptar, e escalar, o que já fazem via licenças para exportação: vacinas anticovid-19, para imunizar a sua própria população [1].

Quanto mais tempo um vírus circula pelas populações, maior a probabilidade de novas variantes emergirem, e maior a probabilidade de surgirem algumas mais virulentas. Tal sucedeu com a gripe espanhola de 1918-19. À data de publicação deste artigo, foram já identificadas quatro variantes do SARS-CoV-2 consideradas “preocupantes”, e quatro consideradas “de interesse” pela OMS [2]. A Europa e o resto do mundo vêm-se a braços com uma 4.ª vaga de infecções, muito devido à maior transmissibilidade das novas variantes. Enquanto países como os EUA e o Reino Unido podem ser tentados a descansar sob os louros de um programa de vacinação de inaudita eficiência e a acreditar na ilusão de um rápido regresso à normalidade, a realidade epidemiológica empresta mais significado às palavras do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres: “Ninguém está seguro, enquanto não estivermos todos seguros.”

Para este fim, a liberdade para investigar, testar, verificar dados, exercer reprodutibilidade, é essencial para a produção das vacinas anticovid-19. 

A África do Sul e a Índia apresentaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) um pedido para o levantamento excepcional de certas provisões do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) para melhorar as condições de investigação e desenvolvimento de ferramentas médicas contra a covid-19. O comunicado diz: “No centro [das barreiras] está a utilização da propriedade intelectual (PI) e outras exclusividades para restringir as opções de produção e distribuição que iriam reduzir o preço dos medicamentos e aumentar o acesso dos doentes. [3]

No entanto, as grandes farmacêuticas alegam que o maior entrave são o aprovisionamento de matéria-prima e a capacidade de produção. Thomas Cueni, director da Federação Internacional de Indústrias e Associações Farmacêuticas: “O enfoque nas patentes de vacinas está mal colocado, é o saber-fazer que é o problema maior. [4] Ora, é precisamente o acesso a este saber-fazer que é impedido pelo patenteamento. Há muitos melhores bolos de chocolate do mundo. Não foi em Campo de Ourique que se inventou o ponto pérola para o merengue, nem como fundir chocolate. Há muitas receitas diferentes para fazer vacinas.

Não é só uma questão de solidariedade internacional, é também uma questão de soberania que se proceda ao levantamento excepcional das patentes. Os esforços da Immunethep e da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) para a produção de vacinas portuguesas seriam facilitados se o Infarmed lhes entregasse os protocolos de produção e testes das vacinas já aprovadas, a que tem acesso no quadro da avaliação regulamentar europeia. Os custos dos ensaios clínicos para testar as vacinas portuguesas, uma das preocupações da Prof. Helena Florindo na FFUL, seriam relativamente menores se os protocolos e tabelas de resultados dos ensaios clínicos fossem entregues aos departamentos de epidemiologia portugueses. Estes protocolos e testes só foram possíveis porque 93MM€ dos impostos de cidadãos europeus e americanos foram investidos [5]. Depois de garantir o financiamento público dos Estados da UE, Reino Unido e EUA, a grande indústria reivindicou direitos intelectuais sobre todos os aspectos de investigação e desenvolvimento de tecnologias anticovid-19. O que lhes permitiu confinar o conhecimento, decidir a escala de produção (apesar de ser claro desde a Primavera de 2020 que a procura iria ultrapassar a oferta) e definir o preço (ainda que o financiamento público tenha reduzido o risco da empreitada significativamente). Fizeram-no com a total cumplicidade dos governos de Estados que as hospedam, como a Suíça, Alemanha e França. 

As vacinas são já um bem público global.

No entanto, o governo minoritário português [6], e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa [7], propagam as mentiras das grandes farmacêuticas à população, procurando justificar um alinhamento totalmente inaceitável com o eixo franco-alemão junto da Organização Mundial do Comércio, contra a proposta da Índia e da África do Sul. Uma proposta bem delimitada quanto ao levantamento das patentes, focada no combate à pandemia por covid-19.   

O modelo de negócio da grande indústria farmacêutica, baseado no monopólio, resume-se a “baixo volume, altos preços”. Foi sempre problemático, considerado um mal necessário. Só poderia funcionar se houvesse mão regulamentar para equilibrar. Esta mão regulamentar é frouxa ou inexistente. Os Estados têm medo de regular; medo da deslocalização das empresas, com consequente perda de empregos.

A grande indústria farmacêutica americana alega que os preços elevados dos medicamentos financiam a inovação. No entanto, 18 companhias indexadas no S&P 500, listadas em Janeiro de 2016, entre 2006 e 2015, distribuíram 99% dos seus lucros aos accionistas, 50% em recompras de acções e 49% em dividendos. O total de $261 mil milhões foi equivalente a 56% da sua despesa agregada em investigação e desenvolvimento (I&D). Os $261MM poderiam ser retornados em preços mais baixos para os medicamentos sem infligir a despesa de I&D, enquanto os accionistas ainda receberiam amplos dividendos [8].

Volvidos 20 anos de displicência e corrupção governamentais, nomeadamente em matéria de transparência, a mais básica exigência democrática, sentimo-nos sequestrados.

Não tem que ser assim! Do que esperamos para avançar com uma requisição civil ao Infarmed?

Luísa Álvares, farmacêutica, ex-directora de economia e resultados em saúde na grande indústria farmacêutica; membro da Assembleia do partido Livre; voluntária no Grupo de Trabalho Assembleia de Cidadãos

[1] Danaiya Usher, A. “South Africa and India push for covid-19 patents ban”, The Lancet, Volume 396, Issue 10265, P1790-1791, December 05, 2020 (acedido a 14.05.2021)
[2] https://www.who.int/en/activities/tracking-SARS-CoV-2-variants
[3] “Examples of IP Issues and barriers in covid-19 pandemic", Communication from South Africa, WTO, 22.11.2020
[4] International Federation of Pharmaceutical Manufacturers & Associations (IFPMA), 2020, “3rd Global Biopharma CEO/Top Execs Virtual Press Briefing – Covid-19”, 28.5.2020 (acedido a 22.2.2021)
[5] Businesswire, 2021, “Governments spent at least €93bn on covid-19 vaccines and therapeutics during the last 11 months”, kENUP Foundation, 11.1.2021 (acedido a 23.2.2021)
[6] “Costa e o levantamento de patentes das vacinas: problemas estão na produção”, Jornal de Negócios, 7 de Maio 2021
[7] “Marcelo diz que levantamento de patentes de vacinas é claramente insuficiente”, Jornal de Notícias, 10 de Maio 2021
[8] Lazonick W. et al., 2017, “US Pharma’s Financialized Business Model”, Institute for New Economic Thinking, Working Paper No. 60, 13.7.2017 (acedido a 25.2.2021)

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