Carta aberta a um pós-bairrista visionário e benemérito

Sr. Pedro Pinto, o Porto precisa tanto de um “bairro dada” como de uma rua gugu-dadá para os portuenses recém-nascidos ou de uma praça gagá para os anciãos. Se não sabe o que fazer ao dinheiro que lhe entrou porta adentro, dê-o aos agentes culturais em dificuldades. Ou às velhas livrarias da cidade que lutam pela sobrevivência, ao contrário da sua, que a sorte bafejou.

Prezado senhor Pedro Pinto, tomei conhecimento pelos jornais de que o senhor tem planos para o Porto. Planos que abonam o seu pós-bairrismo visionário e benemérito. O senhor pretende instalar um “bairro dada” na Rua do Loureiro, entre a Estação de S. Bento e a Ponte D. Luiz I, em “homenagem ao dadaísmo”, antevendo tal empreendimento como a “nova grande centralidade do turismo na cidade” (PÚBLICO, 6-07-2021). Bem-haja.

Podem sossegar os zelotas do património, porque o senhor tem “projetos identitários”. É um comunitarista, quer envolver as populações. Quer “uma rua a falar à Porto, com sotaque à Porto”. Depois da engenharia social, a engenharia linguística. Mas despache-se, que os indostânicos são por ali às dezenas e por estes dias o sotaque bengali é capaz de ser já dominante (não por acaso, a Rua do Loureiro acolhe um monumento dedicado aos mártires da língua bengali). Consta, apesar de tudo, que subsistem uns quantos portuenses nativos e respetivos comércios, à míngua de fregueses. Quando o presente é acerbo e o futuro sombrio, as pessoas agarram-se às memórias. Mas o senhor aprendeu a lição do manifesto de 1918 do bom e velho Tristan Tzara, um romeno radicado em Zurique que falava alemão com sotaque à Porto: ‘abolição da memória: dadá’.

Realmente, que fazer de um passado tão sem lustro como o dessa tortuosa artéria, composto, ao longo dos séculos, por carros de bois, ourives de prata, lojas de reparações eletrónicas e trânsito de padres entre a Sé e a Batalha? Como criar uma nova centralidade do turismo com reminiscências tão imprestáveis? Para quê ruminar memórias macambúzias havendo memórias melhores, e mais lucrativas, à disposição? Ocorreu-lhe o dadaísmo. Não está mal. Podia ter-lhe ocorrido um bairro “beatnick” na Rua das Taipas. O roteiro “nos passos de Leopold Bloom”, na Rua da Boavista. Ou até um “escape room” baseado no quarto de Gregor Samsa, no Largo do Padrão.

Como bom dadaísta, o senhor está-se nas tintas para as convenções. No fundo, quer dessacralizar o património. Mundial ou local, tanto faz. Destruí-lo, para construir de novo. Bem-haja.

Que não tenha existido dadaísmo em Portugal, fora uns débeis resquícios em Amadeo e Santa-Rita Pintor, é um detalhe de somenos. O que importa é que o senhor venceu a fatalidade do lugar. Para genius loci, basta o seu génio.

Percebe-se que nem lhe tenha passado pela ideia, por exemplo, o bairro da Renascença Portuguesa, movimento que a cidade conhece mal e celebra pouco. Desgraçadamente, aquele grémio de intelectuais taciturnos não dá para o cabaret. Pascoaes nunca terá dançado na vida e ninguém imagina turistas a tirar selfies com um boneco do Leonardo Coimbra. Fraco material para um projeto identitário. Por outro lado, pense na pipa de massa que poderia fazer com um museu de cera dedicado ao ultrarromantismo portuense. Imagine a experiência imersiva “O Noivado do Sepulcro”, com fartança de espíritos do lugar e extensões em Agramonte e no Prado do Repouso.

Verdade seja dita, os seus planos não se ficam só pelo pós-bairrismo. O senhor tem rasgo, quer aumentar o número de turistas no Porto de três para quatro milhões. Nada a objetar. Perdidos por três, perdidos por quatro. Confio que as infraestruturas da cidade chegarão para esses, e mais viessem. Mas só posso falar por mim; pelos outros 237.590 habitantes não me atrevo. Não que isso tenha importância alguma, bem entendido. O senhor quer e isso para mim é mais que suficiente.

Mas o senhor não tem só planos grandiosos para o Porto. Tem planos para o Norte. E ama a tal ponto o Porto e o Norte que quer que eles sejam outra coisa que não o Porto e o Norte; quer torná-los “num Silicon Valley cultural”. Entende-se: o senhor não quer para o Porto e o Norte uma identidade de quarta ou quinta categoria. Não se contenta com menos que a melhor identidade disponível no mercado. Se for preciso, manda-se vir de fora. A meios olhamos nós, o senhor não precisa.

Dê-nos identidade cultural, Sr. Pedro Pinto: em qualidade, mas sobretudo em quantidade. Pode ser identidade dadaísta ou outra identidade qualquer. Confiamos no seu critério. O que sobrar, exporta-se.

Para um edil que cá tivemos doze anos, a arte não estava ao serviço de nada porque não tinha serventia. Mas o Sr. Pedro Pinto, confessadamente, gosta “de pensar a arte ao serviço da economia” (PÚBLICO 6-07-2021). Está a arte como estão as bolas de Berlim da confeitaria Serrana, o dadaísmo e o sotaque do Porto. Os próprios portuenses estão ao serviço da economia. A começar pelos portuenses convidados a desamparar as lojas tradicionais que o senhor adquiriu. Em homenagem ao dadaísmo.

Sr. Pinto, ao ouvi-lo dão-me ganas situacionistas. Porque, e agora a sério, o Porto não é o seu parque de diversões, nem o seu curral de turistas. A cidade compreendida entre a Estação de S. Bento e a Ponte D. Luiz I é Património Mundial, com um plano de gestão e regras decorrentes de convenções internacionais ratificadas por Portugal. Há obrigação de assegurar a autenticidade histórica do edificado, a qualidade estética da área, a sua integridade e dignidade. O património classificado não é um bazar de cenários amovíveis como os dos estúdios de cinema, num dia simulacro de um rodeo, no outro de um coliseu da Roma imperial, e os portuenses não são silhuetas em cartão, recortadas à escala, para pôr à varanda ou na soleira da porta, a trajar “à dadaísta” enquanto acenam aos ingleses.

Sr. Pedro Pinto, o Porto precisa tanto de um “bairro dada” como de uma rua gugu-dadá para os portuenses recém-nascidos ou de uma praça gagá para os anciãos. Neste mundo de pernas para o ar, o dadaísmo, que brotou da náusea mais funda, da hora mais negra da humanidade, seria posto ao serviço daquilo mesmo que execrou: o mercantilismo. Estimado senhor, se não sabe o que fazer ao dinheiro que lhe entrou porta adentro, dê-o aos agentes culturais em dificuldades. Ou às velhas livrarias da cidade que lutam pela sobrevivência, ao contrário da sua, que a sorte bafejou.

Despeço-me, Sr. Pedro Pinto, em comunhão dadaísta com a sua pessoa, salvo no que diz o manifesto sobre “respeitar todas as individualidades na sua loucura do momento”.

Faça cumprimentos meus à J.K.

Escritor, deputado na Assembleia Municipal do Porto (PS), membro do Conselho Municipal de Cultura

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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