Orbán e espionagem israelita: um dia num serviço de informações português

Não deixa de ser curioso assistir deste lado à reacção de choque geral quando vêm a público notícias de espionagem à margem da lei. Qual lei? Com base no mundo que conheci, o costume prevalece sobre qualquer lei escrita, desde que nunca ninguém seja apanhado.

“Não me interessa se cometeram crimes no passado; não me interessa o que fazem no presente: nada disto interessa desde que não tenham sido condenados nem sejam apanhados pelo que fazem.” Foi uma das primeiras reflexões feitas por um antigo director do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) no curso geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) que frequentei. Nunca mais me esqueci do que ouvi, até porque depois acabaria por perceber como é que as coisas funcionavam na prática: tanto na forma de recolher informações, como na forma como os próprios oficiais de informações eram sujeitos a um mundo paralelo ao dos demais cidadãos no que diz respeito a direitos e deveres.

Há coerência quanto a este aspecto: o mundo das informações é um mundo à parte do mundo frequentado pelo cidadão comum. Isto é, em grande parte, fruto do circunstancialismo de um meio tão antigo quanto a existência de civilização: existe a obrigação natural de os Estados assegurarem a sua sobrevivência enquanto interesse nuclear da sua existência, sobrevivência essa que só pode ser assegurada se o decisor político tomar decisões que sejam favoráveis aos interesses do Estado e, quanto mais informação sobre quem o rodeia tiver o decisor, maior a capacidade para tomar as melhores decisões e posicionar-se no tabuleiro da política interna e da geopolítica.

No mundo das informações, não há amigos, há interesses. E os aliados são-no por pura conveniência dos Estados, não por mera amizade ou simpatia. No mundo das informações, há um jogo que é jogado por todos com base numa regra fundamental: é possível fazer tudo desde que nunca se seja apanhado a fazê-lo. Depois, cada Estado joga com base na projecção que tem: uns, são considerados “ofensivos”, já que procuram a recolha de informações de forma extremamente activa e, quando necessário, usam essa informação para interferir na política interna de vários alvos; outros, são considerados “defensivos”, procurando obter a informação necessária para defender os seus interesses sem grandes ambições de natureza geopolítica. Embora tendencialmente mais defensivo, Portugal insere-se numa terceira via, aquela em que se privilegia a vocação defensiva, mas em que podem ser esboçadas algumas incursões noutros palcos, sobretudo africanos.

A verdade é que, na prática, todos os jogadores se espiam na medida da capacidade de cada um e há como que um assentimento de que este é o jogo. Portugal não é excepção, já que sanciona criminalmente quem for apanhado a espiar em favor de Governo estrangeiro ou contra os interesses portugueses, mas não sanciona criminalmente quando Portugal espia em seu proveito. Um paradoxo aparente, mas são as regras que todos tacitamente assumem. Paralelamente, recordo-me, por exemplo, daquela vez em que um colega teve de se deslocar a várias embaixadas portuguesas instaladas em Estados africanos. A razão? Os serviços de informações de um dos vários Estados ofensivos tinham conseguido instalar mecanismos de monitorização da actividade em curso nessas embaixadas e era preciso desfazer estes sistemas.

Não houve um grito de protesto formal ou informal. Nem houve um pedido de desculpas. O dito Estado ofensivo era demasiado respeitado pela estrutura do SIRP e pelo poder político português para ser confrontado. E reconheceu-se que Portugal faria o mesmo se tivesse capacidade para fazê-lo. Não tinha com estes meios, fazia-o como podia: através de acções de vigilância e, quando possível, através de meios que permitissem interceptar comunicações.

Olhar para o espanto de Emmanuel Macron e de Angela Merkel sobre o facto de a Dinamarca ter ajudado os EUA a espiar a chanceler causa sentimentos mistos. França tem dos melhores serviços de informações do mundo. A Alemanha tenta acompanhar os franceses. Agora, a mais recente polémica é a de vários Estados terem adquirido e utilizado um programa que permitia espiar alvos políticos, activistas e jornalistas. A figura central desta notícia acaba por ser a Hungria. Não percebo – mentira, até compreendo – qual é a surpresa e porque se foca a investigação em Viktor Orbán. Pelo menos entre 2010 e 2012, os serviços de informações portugueses tinham capacidade para interceptar comunicações electrónicas e telefónicas e obter outros dados através de programas do género. Com base em informações que me foram dadas a conhecer durante algum tempo da minha permanência no SIED, terão conseguido explorar essa capacidade.

Além disto, vários colegas meus no SIED tentaram denunciar “potenciais irregularidades” – eufemismo que faço questão de usar – cometidas por ou a mando de dirigentes do serviço, fazendo-se mesmo referências a práticas dos primos do Serviço de Informações de Segurança (SIS), incluindo a forma como um organismo público era utilizado em favor de interesses empresariais estrategicamente seleccionados. O resultado não podia ser mais esclarecedor: todos os que tentaram fazê-lo junto do Conselho de Fiscalização foram descredibilizados pelos membros deste Conselho e foram acusados de quererem causar instabilidade e subversão nos serviços. Acusaram ainda algumas dessas pessoas de serem responsáveis por colocar informações nos jornais, ignorando por completo as denúncias feitas.

Falo do mesmo Conselho de Fiscalização que agendava visitas “surpresa” e que eram do conhecimento prévio dos serviços, permitindo que se corrigissem atempadamente irregularidades. É o mesmo Conselho de Fiscalização que nada fez quando, num processo-crime, foram juntos documentos que não deixavam dúvidas quanto a quebras de segurança cometidas por dirigentes. É ainda o mesmo Conselho de Fiscalização que permaneceu em silêncio e permitiu que as pessoas da inteira confiança de um director demissionário permanecessem em cargos decisivos e capazes de influenciar e manipular auditorias internas – ainda hoje são esses que controlam os serviços de facto com impunidade total. É também o mesmo Conselho de Fiscalização que não vê qualquer problema em ter um conjunto de pessoas com ligações aos serviços de informações de países ofensivos na estrutura dirigente dos serviços portugueses e na magistratura nacional.

Quando olhamos à volta e vemos este panorama, desistimos de procurar a justiça e a transparência. O poder político e as instituições não querem. Não resta outra hipótese a não ser sair. Por isso mesmo, com as devidas distâncias, não deixa de ser curioso assistir deste lado à reacção de choque geral quando vêm a público notícias de espionagem à margem da lei. Qual lei? Com base no mundo que conheci, o costume prevalece sobre qualquer lei escrita, desde que nunca ninguém seja apanhado.

Alexandre Guerreiro, 40 anos, Lisboa, Doutor em Direito (Ciências Jurídicas Internacionais e Europeias) pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, analista de Justiça e Segurança.

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