Antes que o dia mude

A riqueza cheira-se e ouve-se à distância. Ninguém eleva o tom de voz, não há nenhum elemento desarmonioso no espaço. As pessoas ricas a sério comportam-se de forma a anunciar: “Coexista, mas não se saliente demasiado.”

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Gabby Orcutt/Unsplash

Durmo mal. A minha filha avança à minha frente no passeio: descalça e traz apenas a fralda vestida. As suas perninhas titubeantes vão estranhamente progredindo com ligeireza no passeio sem que eu consiga entender. Como é que consegue mover-se àquela velocidade? Não sou capaz de alcançá-la. Vejo-a parar junto a um portão enorme verde-musgo, cujas barras de ferro estão demasiado próximas. O espaço entre as grades só permite que o seu pequeno corpo consiga atravessar o portão. Através das grades vejo um jardim enorme e a uma mansão cinzento-clara, certamente desenhada por algum arquitecto de renome. A minha pequenina passa por entre as barras do portão e avança com os pezinhos descalços. Chamo-a em voz alta. Ignora-me ou não me ouve, não sei.

Está demasiado entusiasmada com a sua mais recente aquisição: andar a grande velocidade. Através dos intervalos das barras do portão vejo algumas pessoas espalhadas de forma aleatória pelo jardim. Pessoas finórias, diria, vestidas com roupas dispendiosas e cabelos penteados por profissionais. São maioritariamente mulheres, mas também alcanço um grupo de homens usando fatos de linho claro. A riqueza cheira-se e ouve-se à distância. Ninguém eleva o tom de voz, não há nenhum elemento desarmonioso no espaço. As pessoas ricas a sério comportam-se de forma a anunciar: “Coexista, mas não se saliente demasiado.”

Subi a uma árvore e saltei o muro. Magoei o joelho direito ao cair no relvado, mas não teve importância. Tenho de encontrar a minha filha. Olho em volta e não há sinais dela. Peço ajuda a uma senhora de chapéu branco. Tem uma certa idade, mas olha-me de um modo fresco. Não me sabe dizer se viu a minha filha, e não mostra qualquer interesse pelo meu nervosismo de mãe. Percebe-se que está mais interessada em continuar a bebericar o champanhe que deve custar perto de metade do ordenado mínimo nacional. “Nenhum destes queques não me vai ajudar.”

Começo a ficar realmente enervada. Dirijo-me à mansão. A porta está encostada, entro e começo a chamar pela minha filha. Nenhuma resposta, a mansão parece vazia. Percebo que tem vários andares, não sei por onde devo começar. No rés-do-chão há um corredor todo branco e extensíssimo com dezenas de portas. Abro uma ao calhas e encontro um berçário: centenas de bebés parecidos com minha filha dormem em caminhas. São tão semelhantes à minha pequena. Chamo-a, mas nenhum dos bebés reage. Sinto um desespero crescente, volto para o corredor e, uma por uma, abro todas as portas. Os quartos encontram-se mobilados luxuosamente mas sem vivalma dentro. Desço uma escada que dá acesso a uma piscina interior e começo a chorar. Talvez tenha acontecido algo de grave, talvez a minha menina esteja em perigo. Grito o nome dela e choro, já não estou minimamente controlada. 

Ao meu lado na cama, ouço o meu marido respirar tranquilamente. O quarto da residencial está abafado, tenho o peito suado na linha abaixo das mamas. Durmo mal. Tenho pesadelos. Penso na minha filha que ficou com os avós para que eu pudesse vir dar mais uma entrevista sobre os meus livros. “Está tudo bem com a menina.” Limpo com as duas mãos, uma de cada lado, o suor das mamas. Os hóspedes do quarto ao lado são barulhentos. Oiço-os falar alto, embora não perceba o que dizem.

Consulto o relógio do telefone: 6h47. É tão cedo. Devia dormir mais, mas sei que não consigo. Estou inquieta. Nem um orgasmo consegui ter na noite anterior. O meu marido ficou chateado. Sei que gosta de me dar prazer e não entende que não me importo se não atingir o clímax sempre que fazemos amor. Não percebe que, para mim, o sexo é muitas vezes uma forma de ter afecto e intimidade. Pareço e sinto-me uma tola por pensar desta maneira retrógrada. Talvez a educação e as convenções sociais me façam pensar assim, que é piroso valorizar mais o afecto do que a foda. Tenho de escrever o texto para o PÚBLICO. Vou levantar-me da cama, pegar no telemóvel e começar a trabalhar. Aqui estou. No escuro do quarto de uma residencial decadente. Nem bem, nem mal. Com saúde, é verdade, não me posso queixar. A vida humana não é harmoniosa. Tenho de aproveitar estes tempos de boa feição, antes que o dia mude. 

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