Um lugar estranho
Um dia fui parar àquela casa levada pela curiosidade e foi sempre, na verdade, a curiosidade a levar-me aonde cheguei. O meu motor. Aquele que me inventa perguntas. E eu vou lançada nas perguntas mesmo quando não tenho respostas.
Era uma casa assente na areia. Um bloco estranho e moderno antes de eu perceber o que era isso da modernidade.
A casa tinha a fachada comida pelo sol e pelo mar. Expunha-se ali no areal como um corpo despido. Aventurava-se ao que vinha e o que vinha, para além do mar e das intempéries, eram os inquilinos ocasionais.
Um dia fui parar àquela casa levada pela curiosidade e foi sempre, na verdade, a curiosidade a levar-me aonde cheguei. O meu motor. Aquele que me inventa perguntas. E eu vou lançada nas perguntas mesmo quando não tenho respostas. Não sei nadar mas lanço-me na interrogação como vejo gente a deitar-se às ondas.
Tinha 16 ou 17 anos e tinha descoberto que havia mais gente a gostar do mesmo que eu. Tardou esse tempo em que fiz amigas, em que elas me deram desgostos e a alegria máxima de estar viva. Vivemos nesse jogo constante de a vida acontecer de formas diferentes. Lembro-me de um dia elas terem ido ao Porto e não me terem convidado e eu ter sentido que o mundo acabava numa viagem que para mim nem tinha começado.
De certa forma, todos, mesmo adultos, passamos a vida a lidar com a exclusão, mas depois passamos nós a escolher as nossas viagens e, sobretudo, os nossos amigos.
Voltemos à casa. Era amarela. Um amarelo carcomido pelo tempo e pelo Inverno que lhe trazia abandono. Porque a casa mesmo sendo estranha era um sítio onde todos queriam estar nem que fosse por estar a um passo de um mergulho.
Este é de facto um mergulho na adolescência. Havia discos e drogas naquela casa. Lembro-me, nesse tempo, de a comida não ter significado. Foi a primeira vez que menti aos meus pais dizendo que ficaria em casa da Susana. A Susana disse que ficaria em minha casa e assim nos encobrimos para rumar a outras descobertas.
Havia muitas festas nessa casa amarela, um amarelo já sem expressão que o sol não conservara. Toda a gente queria ir à Casa Amarela.
Na altura líamos Bret Easton Ellis e as suas Regras da Atracção. O livro confirmava tudo o que ali se vivia: The rules are: there are no rules. E não havia regras de facto. 3 homens mais velhos tinham alugado aquele estranho objecto assente na areia e abriam o espaço à descoberta.
Lembro-me, com as amigas que ainda hoje o são, da noite em que elas chegaram com um bolo de bolacha feito com massa crua (de ovos e farinha) e de não haver notícia de alguém ter ficado doente com isso. O que por ali se passava era muito mais forte do que um bolo mal feito, do que uma receita mal concretizada.
Levei as regras da atracção muito a sério: apaixonei-me pela primeira vez e dormi, também pela primeira vez, com um homem. Um homem mais velho. Um homem que ficava bem naquela casa entre discos, cigarros, álcool e outras substâncias que não eram massa crua.
Quando eu dormia em casa da Susana, estava ali. Quando a Susana dormia em minha casa, ela também estava ali. Todas e todos a descobrir que havia mais mundo do que parecia.
Saíamos noite fora pelo areal em madrugadas intermináveis. Depois era manhã outra vez. Talvez se limpassem os cinzeiros e os copos partidos. Talvez os vinis voltassem a tocar baixo. A relativa normalidade da casa amarela era reposta e a sua erosão, exposta.
Penso que para os meus pais, a casa amarela foi um longo pesadelo. Eles não sabiam bem o que lá se passava (a casa tornou-se um lugar mítico, acho que com mais fama do que proveitos) mas sabiam que existia e pressentiam que era mais do que alguma vez tinham desejado para mim.
Foi muito bom ter passado por lá. Ter chegado aos amigos que conheci. Rir-me do bolo de massa crua, dançar sem me dizerem para parar - que era demasiado.
Muitos anos mais tarde, um dia levei os meus pais a ver de fora a casa amarela. Tinha sido renovada. Continuava a ser estranha mas era agora outro lugar sem inquilinos indomáveis.
Não sei o que ficou na cabeça dos meus pais. Sei o que ainda está na minha: fui feliz naquele lugar estranho. Sem regras. Onde a atracção me levou ao amor.
The rules were: there were no rules.