África do Sul, Zuma e as causas dos protestos

Jacob Zuma é talvez dos mais populares presidentes que a África do Sul teve, ficando apenas atrás de Mandela, e tem muitos apoiantes no seio da classe trabalhadora. Mas os actuais protestos nas ruas das principais cidades do país têm muito pouco a ver com a sua prisão.

A África do Sul vive uma das mais profundas crises, com raízes que assentam no legado do regime do Apartheid e do neoliberalismo dos quais a ‘democracia’ sul-africana nasceu. O Congresso Nacional Africano (ANC) não foi capaz de efectuar uma transformação radical na estrutura económica e agrária do país e a maioria dos cidadãos sul-africanos – quem, através do voto, concedeu ao ANC poder político desde 1994 – sente-se traída e abandonada pelo Governo. Em 2019, o Banco Mundial classificou a África do Sul como sendo o país mais desigual do mundo. Desigualdades que assentam predominantemente nas oportunidades económicas e no acesso a terra (para produção e habitação).

No último período da presidência do ex-Presidente Jacob Gedleyihlekisa Zuma, este ‘liderou’ uma ala, no ANC, que pressionava para uma transformação económica radical (RET, Radical Economic Transformation), uma vez que o partido perdia legitimidade e abria espaço para outros actores políticos capitalizarem a fúria popular, a fome e a exclusão da juventude. Os combatentes pela liberdade económica (EFF, Economic Freedom Fighters), agora a terceira maior força política com assento no parlamento, são, em grande parte, resultado disso.

A agenda do RET incomodou a chamada ‘mafia de Stellenbosch’ – um conjunto de famílias magnatas que controlam os mais nevrálgicos sectores da economia do país e têm o apoio da ala neoliberal do ANC, quiçá mais representada pelo actual Presidente, Matamela Cyril Ramaphosa. Ramaphosa é, ele próprio, dos mais abastados magnatas da África do Sul, com uma forte presença no sector alimentar (fast food), nas telecomunicações, na agricultura e na mineração. Das companhias em que tem forte participação destacam-se a McDonald’s, o MTN e a Lonmin.

A recente prisão de Jacob Zuma por desrespeito ao tribunal é tida como a razão que incitou protestos populares, incluindo actos de pilhagem a estabelecimentos comerciais e destruição de propriedade nas províncias de KwaZulu Natal (sua terra natal) e Gauteng. Zuma faltou deliberadamente à comparência a sessões do ‘Zondo Commission’ – uma espécie de comissão de inquérito público encabeçada pelo juiz Raymond Zondo, e criada precisamente pelo governo de Jacob Zuma, em 2018, para investigar alegações do chamado ‘state capture’, corrupção e fraude no sector público no país. A Zondo Commission foca-se principalmente no período em que Jacob Zuma esteve na presidência do ANC e do país, e supostamente favoreceu em concursos públicos uma família de empresários de origem indiana, os Guptas, em troca de favores, incluindo a inserção de um dos filhos de Zuma no mundo dos negócios. Jacob Zuma, que depôs numa longa sessão diante do juiz Zondo, tem acusado a Comissão de se ter transformado num expediente político para o perseguir e retrair a implementação da agenda do RET.

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A violência na África do Sul já fez pelo menos 72 mortos SIPHIWE SIBEKO/REUTERS

Zuma recusou-se a comparecer a sessões subsequentes por entender que tinha dito tudo o que havia para dizer ao juiz Zondo e à Comissão. Enquanto isso, os seus apoiantes foram mobilizando as massas, principalmente na província de KwaZulu Natal, para se levantarem em seu apoio, já que ele seria uma vítima de perseguição, por apoiar uma agenda de transformação que beneficiaria as classes pobres. A prisão de Jacob Zuma foi, sem dúvida, um pretexto para que os actuais protestos eclodissem. Zuma é talvez dos mais populares presidentes que a África do Sul teve, ficando apenas atrás de Mandela, e tem muitos apoiantes no seio da classe trabalhadora. Contudo, os actuais protestos nas ruas das principais cidades do país – que paralisaram a economia, o comércio e o funcionamento de serviços básicos – têm muito pouco a ver com a sua prisão.

Estes protestos são de natureza socioeconómica. Um estudo recente revelou que 63% dos jovens até aos 24 anos estão desempregados na África do Sul. Este é indubitavelmente um dado chocante, mas os altos níveis de desemprego caracterizaram sempre a economia sul-africana ao longo dos anos. E isto não é um ‘acidente’. O desenvolvimento do capital na África do Sul neoliberal é excludente por natureza. A produção do desemprego massivo é parte integrante do processo do desenvolvimento do capitalismo. No caso concreto da África do Sul, a exclusão da mão-de-obra local foi sempre combinada com a superexploração da mão-de-obra imigrante, principalmente em sectores da mineração e agricultura. Isto é, em parte, a razão para os sucessivos ataques xenófobos violentos contra trabalhadores e trabalhadoras imigrantes pobres, incluindo sobretudo dos países africanos circunvizinhos.

A África do Sul não é o único país em que as taxas do desemprego são tão elevadas. Moçambique é outro dos casos. A diferença, contudo, reside no facto de Moçambique ter (ainda) fácil acesso a terra para produção alimentar por parte da juventude, na sua maioria rural. A estrutura agrária na África do Sul mantém-se inalterável apesar de várias tentativas de reforma agrária fracassarem, principalmente porque estiveram sempre baseadas numa perspectiva orientada para o mercado. Quase três décadas após o fim do Apartheid, perto de 70% das terras agrícolas produtivas na África do Sul estão nas mãos de poucos milhares de famílias, na sua esmagadora maioria brancas. A vasta maioria da população é sem terra e sem tecto. Muito pouca gente sabe que trinta milhões de pessoas comem irregularmente e 14 milhões vão para a cama com fome todas as noites na África do Sul.

A pandemia da covid-19 veio agravar todos estes problemas. As duras medidas de prevenção impostas pelo governo – cuja imposição era frequentemente autoritária e repressiva – causaram a perda de milhões de postos de trabalho e criminalizaram as actividades económicas do sector informal que aliviavam, até certa medida, os efeitos da falta de emprego formal. Aliado a isso, a forma como o governo geriu a pandemia, incluindo adjudicações directas sem concurso público, abriu espaço para a corrupção. Tanto o ‘suspenso’ secretário-geral do ANC, Ace Magashule (apoiante da ala do RET, portanto, de Zuma), quanto o actual ministro da Saúde – da ala Ramaphosa – foram acusados de terem desviado milhões de randes (moeda sul-africana) dedicados ao combate à covid-19. Enquanto isso, os 350 randes (cerca de 20 euros) que Cyril Ramaphosa prometeu em 2019 de ajuda mensal às pessoas sem emprego nunca chegaram a muitas pessoas, que sem dúvida viram a rua como a única via para expressar a frustração e ‘pilhar’, dentre outros, produtos alimentares nos supermercados.

Tudo isto foi frustrando os segmentos mais pobres da população sul-africana, abandonada num lado da linha abissal, enquanto as lideranças governamentais do ANC se ‘refastelam’ do outro lado, na sua maioria insensíveis às agruras dos que nada têm a perder.

Boaventura Monjane é pesquisador de pós-doutoramento no Institute for Poverty, Land and Agrarian Studies (PLAAS), da Universidade do Cabo Ocidental (UWC), um dos mais importantes institutos de pesquisa sobre pobreza, questão fundiária e agrária na África do Sul e no continente africano. Vive na cidade do Cabo de forma continua desde Janeiro de 2019 e tem visitado o país com frequência desde 2011. Parte da sua tese de doutoramento foi sobre as lutas pela reforma agrária na África do Sul

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