Cultura, cidades e desenvolvimento sustentável

Importa cada vez mais valorizar práticas culturais que privilegiam o relacional, a proximidade, a terra, o detalhe, a transformação, que zelam pelas genealogias e que constroem o presente a pensar no amanhã.

A excessiva dependência fóssil, o aquecimento global, o despovoamento das grandes cidades, a descrença na política, ou a crescente força dos populismos, obriga-nos a questionar como é que as cidades podem ser mais sustentáveis e que papel a cultura tem numa inevitável transição socioecológica.

A visão da cultura como indústria, que tem dominado em grande medida a gestão cultural e as políticas públicas em Portugal, muito em particular, em algumas das grandes cidades, que consolida a dicotomia Estado-mercado e a correspondente associação do público ao Estado e do privado ao comercial, esquece uma série de práticas e processos culturais que ajudam a superar visões dicotómicas (natureza versus cultura, por exemplo), a repensar a escala, a proximidade, a ensaiar outras formas de recuperar conhecimentos tradicionais ou alternativas que transformam o presente.

É preciso, pois, olhar para as propostas culturais que, de uma forma ou de outra, procuram processos de transformação social, que estruturam o território e tecem comunidades, e nos ajudam a redesenhar as políticas públicas. Focarmo-nos na manutenção e sustentabilidade desses processos é um exercício de co-responsabilidade coletiva, da qual todos fazemos parte dependendo das nossas responsabilidades cívicas, políticas, académicas, ou administrativas.

A cultura é um laboratório experimental de encontro e participação decisivo para a gestão moderna das grandes cidades. Importa por isso ultrapassar a visão da cultura como uma mercadoria ou indústria (com tudo o que isso acarreta de homogeneização) e ultrapassar o exercício de políticas públicas centradas mais na promoção e distribuição e menos na participação e mediação, e que contribuem, nomeadamente, para uma desconexão entre política e cultura e para um distanciamento entre o setor cultural e a cidadania, valorizando outras formas de fazer as coisas, como o associativismo, cooperativismo, cultura popular ou promoção de espaços de produção independente e cujas práticas culturais têm sido relegadas, aos olhos da “alta cultura”, à invisibilidade e à precariedade, apostando numa visão da cultura assente nos cidadãos e nas formas como estes se relacionam ou fazem coisas juntos.

Importa assim e cada vez mais valorizar práticas culturais que privilegiam o relacional, a proximidade, a terra, o detalhe, a transformação, que zelam pelas genealogias e que constroem o presente a pensar no amanhã.

O impacto desses processos comunitários talvez seja menos tangível no curto prazo, longe do imediatismo do desenvolvimento económico, mas eles são o caminho para cidades mais sustentáveis económica, social e ambientalmente. O rumo a seguir é pois o de uma gestão comunitária da cultura assente na sustentabilidade social e numa visão mais antropológica. Um olhar político sobre a cultura que nos permita pensar juntos, questionar o mundo em que vivemos e construir imaginários alternativos.

O compromisso a atingir é o de considerar o indivíduo como um ser cooperativo. O que não impede o fortalecimento do sistema cultural público, muito pelo contrário, que deve garantir os direitos culturais e as ferramentas que permitam que aquelas práticas sejam sustentáveis. Garantir os direitos culturais é, portanto, uma condição necessária para avançar para uma transição socioecológica. E uma das vertentes mais importantes dos direitos culturais é o direito de participar na vida cultural, que implica não apenas a acessibilidade ou possibilidade de ser destinatário, mas a possibilidade de ser agente ativo do desenvolvimento e da gestão e de participar nos próprios processos de decisão.

Em 2018, o Conselho da Europa aprovou uma Recomendação sobre a Participação dos Cidadãos na Vida Pública Local (Recommendation CM/Rec), que enuncia os princípios básicos a considerar no âmbito da formulação de uma política de participação democrática local: Partilha da informação de forma acessível; Promoção de uma cultura de participação democrática e de espírito cívico; Promoção de uma cultura de proximidade; Garantir a participação equilibrada entre os géneros, reconhecendo a importância do contributo de todos na formação de sociedade inclusivas e estáveis. Infelizmente, esta Recomendação está por cumprir em muitas cidades, como Lisboa, que nem um Conselho Municipal de Cultura tem.

Na valorização dos direitos culturais um exemplo inspirador é o recente plano FEM CULTURA, uma iniciativa pioneira em Barcelona para garantir o acesso, a participação e o direito de contribuir para a vida cultural. Com esse plano Barcelona procura integrar, a partir de uma lógica municipalista, o debate internacional no campo dos direitos culturais, constituindo-se como uma cidade pioneira na aprovação de um plano específico de direitos culturais que incorpora, ao mesmo tempo, um ambicioso quadro de reflexão política e um conjunto de medidas de governança e ações inovadoras.

O plano procura abrir caminho para um reconhecimento formal dos direitos culturais à escala internacional a partir da prática municipal, com a vontade de criar discursos e fomentar o aparecimento de semelhantes iniciativas. No total, são 100 ações que deverão ser realizadas até 2023 com um orçamento de cerca de 68,7 milhões de euros para que Barcelona seja dotada de uma política cultural baseada nos direitos culturais e tenha como considerações centrais aspectos como acesso, práticas culturais, inovação, governança democrática, reconhecimento da diversidade, criatividade, produção cultural e fortalecimento comunitário com cidadãos e agentes setoriais.

Outro bom exemplo, também em Espanha, mas este em termos de iniciativa legislativa, é a Lei Provincial 1/2019, de 15 de janeiro sobre os direitos culturais em Navarra, que regulamenta um conjunto de direitos que permitem aos cidadãos o acesso e gozo universal dos conteúdos culturais, bem como pormenoriza as obrigações. É a primeira vez que o ordenamento jurídico espanhol confere aos direitos culturais o estatuto de lei, o que constitui um claro passo em frente na sua defesa como bem essencial.

Os direitos culturais são a garantia de que os cidadãos têm mesmo espaços, estruturas e orçamentos necessários para articular propostas, acolher e proteger o património cultural ou gerar projetos que repensem, questionem e reformulem narrativas hegemónicas. A cultura é uma forma de mergulhar na criatividade e na experimentação, que permite procurar novas soluções. Criar as condições mínimas para que isso aconteça é um passo necessário na busca de alternativas para as crises climáticas que se nos deparam.

A lógica de crescimento e desenvolvimento em que as cidades modernas se têm baseado está atualmente em crise. A construção de um modelo económico de irresponsabilidade pelas consequências tem gerado uma crise ecológica sem precedentes. Por isso, se entendermos a cultura como parte fundamental dessa transição eco-social, as políticas culturais devem estar diretamente vinculadas às necessidades locais, comuns e básicas das comunidades. É com os processos participativos em que, a partir da experimentação, os cidadãos problematizam e pensam alternativas, que se ativa o imaginário político que constrói alternativas.

Com esses processos é possível incorporar uma maior consciência ecológica, minimizar a pegada ecológica, as emissões de carbono e facilitar estratégias para consumir produtos locais, aumentando a autonomia das comunidades locais. Reduzirmos as reflexões e ações a tomar à mera discussão redutora do contributo das ciclovias, do maior uso dos transportes públicos e da necessidade de construção de parques de estacionamento nas periferias das grandes cidades afunila o debate e não inspira novos contributos da sociedade civil e das universidades.

As práticas culturais têm um impacto ecológico e é preciso delinear ações para reduzi-lo. O que implica olhar para as deslocações, as viagens e a produção e exibição dos espetáculos e exposições, mas também olhar para as potencialidades que a cultura gera quando se trata de um território coeso, tecendo comunidades mais preparadas e resistentes a adversidades. A cultura de proximidade, a cidade dos 15 minutos, são pois caminhos incontornáveis.

Um espelho interessante para a cultura pode ser o agro-alimentar e o seu compromisso com os circuitos curtos de comercialização, os mecanismos de distribuição dos chamados alimentos quilómetro zero, o baixo uso de produtos químicos na produção ou a manutenção de sementes tradicionais como exemplo de rica variedade genética. A superação do binómio cultura-natureza permite abordar a natureza de forma mais harmoniosa e menos destrutiva, rumo a uma economia compatível com a vida e com a sustentabilidade económica impulsionada pela economia social e solidária, e assente na adopção de processos mais sustentáveis ​​e compatíveis com a vida em todas as fases de produção de um projeto.

No contexto internacional, a Agenda 2030, o plano de ação das Nações Unidas assinado por 193 países em 2015, assume o compromisso de transformar as nossas vidas em direção ao desenvolvimento económico e social sustentável e ambiental. Parece difícil apostar na transformação das políticas públicas e no desenvolvimento sustentável sem assumir a dimensão cultural que muitos conflitos e desafios contemporâneos têm. No entanto, não há um objetivo específico em torno da cultura.

Apenas a meta 4.7 dos ODS para 2030 se refere à necessidade de valorizar a diversidade cultural e à contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. Evidentemente que a cultura está presente de forma transversal noutras áreas (saúde, género, pobreza, etc.), mas a ausência de uma meta específica em torno da cultura nos ODS 2030 exige uma mudança na concepção, desenho e implementação de políticas em torno dela. A cultura deve obrigatoriamente ter um papel maior na esfera pública e fazer parte do debate sobre o futuro do planeta. Alguns dos ODS, como o número 11 (cidades e comunidades sustentáveis) ou o número 5 (igualdade de género) são atravessados ​​por conflitos de dimensão cultural. Para alcançá-los, é fundamental desenvolver projetos que envolvam a participação e mobilização da sociedade civil e a construção de alternativas e imaginários para outras realidades.

Assim, os pontos determinantes para uma prática cultural mais sustentável e consequentemente para atingirmos cidades mais sustentáveis serão os seguintes: boa governança e participação dos cidadãos (as comunidades devem ter espaços de participação na tomada de decisões e de desenvolvimento de formas de organização mais horizontais e colaborativas baseadas na co-responsabilidade coletiva); diversidade e justiça social (a inclusão das perspectivas de género, diversidade sexual, raça ou capacidades diferentes passa pela ativação e questionamento dos modelos sociais que aceitam a dissidência e representam outros modelos de vida como forma de contribuir para um mundo mais diversificado e amplo); capacidade crítica (a cultura tem a capacidade de questionar modelos sociais ou imaginários, gerando espaços de encontro onde pensar alternativas e modificar quadros normativos); interação com o contexto local e a comunidade (intencionalidade de trabalhar na melhoria das condições de vida da comunidade na qual o projeto está inserido, valorizando as raízes e laços territoriais, a colaboração e interação com o meio ambiente, com os artistas da área, o conhecimento local e o diálogo com o tecido associativo); financiamento diversificado (é preciso ter o apoio equilibrado de diversos representantes para não depender de uma única fonte, o que pode pesar na continuidade da prática cultural.

E aqui o mecenato cultural é a peça chave); condições de trabalho dignas (a cultura, como a pandemia revelou à exaustão, sofre de precariedade para os trabalhadores, pelo que este aspecto deve ser cuidado e as condições de todos os agentes envolvidos valorizadas); promoção de redes de colaboração com entidades do chamado terceiro setor (é necessário envolver agentes e comunidades não diretamente ligados às práticas culturais, bem como apoiar entidades da economia social como cooperativas, fundações, plataformas e movimentos de cidadãos); articulação estratégica entre cultura e educação (valorização da educação artística, aquisição de aptidões culturais, envolvimento das escolas e de outros centros educativos em atividades de criação cultural, de distribuição e de mediação, que incluem desde residências para artistas a projetos mais abrangentes, designadamente como a formação para a criatividade); cuidado com o território (consciencialização do impacto ecológico de um projeto cultural e respeito e vinculação com a área em que está inscrito, bem como atenção e consideração aos seus principais problemas ou vulnerabilidades); promoção do uso de materiais e energias alternativas sustentáveis (colaboração com entidades e fornecedores que possuem parâmetros de sustentabilidade ambiental, bem como a conscientização para incentivar o uso de materiais e energia mais sustentáveis ​​na comunidade), e baixa pegada ecológica (redução da dependência do uso de combustíveis fósseis e do uso do carro).

A sociedade, e não apenas o setor cultural, tem de aceitar renúncias, como a limitação do consumo e da mobilidade. É necessária uma mudança cultural, que em parte já está a acontecer, pois há inquestionavelmente uma maior consciência social sobre a crise climática, sobretudo nos jovens, que cada vez mais lideram processos de mudança em plataformas globais, como a Sextas-feiras pelo Futuro ou a Fashion Revolution  de que Portugal faz parte. Por outro lado, no próximo ano Portugal acolherá o Congresso ibero-americano de Cultura, o que pode reforçar a inclusão destas temas nas agendas de mais cidades portuguesas.

Mas há muito a fazer. E cada um de nós tem um papel a cumprir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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