Angola e os direitos humanos no plano internacional e interno

Uma nova era com a posição do executivo perante as vítimas do 27 de Maio de 1977? Qualquer investigação tem de ser rápida, efectiva e minuciosa, independente e imparcial, e transparente, sendo a participação dos familiares nas investigações um elemento essencial de uma investigação efectiva.

Este ano, na véspera do aniversário do 27 de Maio de 1977, a sociedade angolana e internacional foi surpreendida com as declarações do Presidente João Lourenço, pedindo desculpas em nome do Estado angolano pelas execuções sumárias e garantindo que o gesto “carregado de emoção e de um grande simbolismo” “não se resume a simples palavras”, mas reflecte “sincero arrependimento e vontade de pôr fim à angústia que estas famílias carregam por falta de informação sobre o destino dado aos seus entes queridos”. Foram 13 minutos de discurso histórico. Um acto de “quebrar o silêncio de mais de quatro décadas”.

Além do pedido público de perdão aos familiares das vítimas que vivem até ao presente a angústia do desconhecimento do destino dos seus entes queridos, o Presidente João Lourenço afirmou que seria dado “início ao processo de localização dos restos mortais” “para exumação e entrega aos familiares”.

O discurso é de enaltecer e de apoiar o esforço de clarificação dos factos e de reparação às vítimas, nas quais se incluem os familiares.

Após o 27 de Maio de 1977, foram cometidas violações dos mais elementares direitos humanos, em particular actos que consubstanciam desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais e tortura. Apurando-se que os desaparecimentos fizeram parte de um ataque sistemático contra civis, poderão mesmo constituir um crime contra a humanidade.

Não é assim demais recordar que a investigação de tais violações de direitos humanos é essencial e ela própria um direito humano, e que deve seguir os princípios internacionalmente reconhecidos nesta matéria.

Uma das decorrências do direito à vida, e dos demais direitos violados num desaparecimento forçado (direito a não ser sujeito a tortura ou tratamento desumano ou degradante, direito à liberdade, direito a ser reconhecido como pessoa portadora de direitos perante a lei, direitos processuais e direito à vida familiar, pelo menos) é a obrigação que recai sobre as autoridades de investigarem estas situações, de garantir a responsabilização e de remediar as violações.

Qualquer investigação tem de ser rápida, efectiva e minuciosa, independente e imparcial, e transparente, sendo a participação dos familiares nas investigações um elemento essencial de uma investigação efectiva. Entre outros, os familiares têm o direito de solicitar e de obter informação, no mínimo, sobre as autoridades responsáveis pelo desaparecimento e privação de liberdade, as datas e o local do desaparecimento, e quaisquer transferências, e sobre o paradeiro da vítima.

Outro dos direitos decorrentes de uma violação desta natureza é direito a um remédio efectivo para as vítimas. Este implica que as vítimas tenham um direito de acesso efectivo à justiça, a uma reparação adequada, efectiva e rápida e ao reconhecimento do seu estatuto perante a lei. A reparação integral inclui a restituição, compensação, reabilitação, garantias de não repetição, e de adequada satisfação. Esta última implica que o Estado efectue a verificação dos factos e a divulgação pública da verdade, a descrição precisa das violações em causa, que sancione juridicamente ou censure politicamente os responsáveis e efectue a busca dos corpos das pessoas mortas.

A determinação do paradeiro final da pessoa desaparecida é fundamental para aliviar a angústia e o sofrimento dos membros da família causados pela incerteza quanto ao destino do seu parente desaparecido. Enquanto o destino ou paradeiro da pessoa desaparecida não for determinado com certeza, perdura a violação. Mais, o direito a conhecer a verdade estende-se a toda a sociedade, dado o interesse público na prevenção e responsabilização pelas violações do direito internacional.

Até agora, a República de Angola não lidou com o 27 de Maio de 1977 de acordo com estes princípios rectores, vertidos em vários documentos internacionais, a saber nos Princípios orientadores para a busca de pessoas desaparecidas publicados pelo Comité sobre Desaparecimentos Forçados das Nações Unidas em 8 de Maio de 2019 e no Protocolo do Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas de 2016, das Nações Unidas. E vertidos ainda na Convenção Internacional para a Protecção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado.

No discurso histórico foi referido que “devido à necessidade da manutenção do sigilo até à data de hoje, apenas nos próximos dias serão feitas as primeiras escavações e dados os primeiros passos na materialização do que acaba de ser anunciado”. E que “pelo tempo transcorrido é de esperar que não se consiga localizar e identificar os restos mortais de todas as vítimas, mas tudo faremos para que o maior número possível de famílias atingidas possam realizar um funeral condigno dos seus entes queridos pedindo desde já a compreensão de todos para aqueles casos em que não for possível atingir este objectivo.” E, finalmente, que “não é hora de apontar o dedo aos culpados”. Factores que indiciam não estarem a ser cumpridos os standards que enunciámos.

Não pode Angola deixar de adoptar agora, de forma coerente e consequente com o discurso histórico do Presidente em 26 de Maio de 2021, métodos coerentes com os princípios internacionalmente reconhecidos, em particular o direito de participação das vítimas, e de investigação efectiva dos factos, bem como de responsabilização, ao menos histórica, até para dissuasão da ocorrência de casos similares no futuro.

Angola vem procurando reposicionar-se no plano internacional em matéria de direitos humanos, muito em resposta à crescente pressão internacional decorrente dos vários relatórios publicados sobre o país nesta matéria. Entre outros, Angola foi membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2007-2013 e 2018-2020. Em 2020 foi aprovada, por decreto presidencial, a “Estratégia Nacional para os Direitos Humanos” cujo objectivo central, segundo o Ministério da Justiça e Direitos Humanos, é “tornar Angola numa referencia na garantia, respeito e defesa dos Direitos Humanos, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como zelar pela observância e respeito pelos Direitos Humanos em Angola”. A presidência da CPLP, que Angola assume a partir de Julho deste ano, será mais uma oportunidade para o efeito.

Outra oportunidade, a partir do discurso do Presidente em 26 de Maio de 2021, será a ratificação da Convenção Internacional para a Protecção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado e do Protocolo opcional à Convenção contra Tortura das Nações Unidas[1]. É verdade que a República de Angola ratificou em 2019 a Convenção contra a tortura e outros tratamentos cruéis desumanos ou degradantes das Nações Unidas, o que é de louvar.

Todavia, a mera assinatura - e a não ratificação - das duas convenções supra mencionadas não contribuem de todo para credibilizar as afirmações proferidas no plano nacional e internacional pelas autoridades angolanas, nomeadamente quando referem pretender finalmente lidar de forma efectiva com as vítimas do 27 de Maio de 1977. Trata-se apenas de anunciadas intenções, ou de verdadeiras e decididas acções?

Há oportunidades que Angola tem de agarrar caso pretenda realmente afirmar-se como um país que leva os direitos humanos a sério. E essas prendem-se com a actuação resoluta para investigar o destino dos desaparecidos no 27 de Maio de 1977. Investigação que tem de ser feita de acordo com os princípios internacionalmente reconhecidos, para que não se trate de um “atirar areia para os olhos”, mas sim de uma verdadeira e exaustiva investigação, com o devido reconhecimento às vítimas.

Serão aquelas convenções ratificadas? Será aquela investigação feita, com a participação efectiva das famílias das vítimas, e até às últimas consequências? Talvez possa mesmo Angola convidar um Relator Especial a visitar o país para o efeito de monitorizar a investigação anunciada? É um tipo de convite sugerido na “Estratégia Nacional para os Direitos Humanos” de 2020.

São questões por ora sem resposta. Talvez o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ou o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, possam colocá-las aos respectivos homólogos nos próximos dias 16 e 17 de Julho de 2021, na cimeira da CPLP a realizar em Luanda.

Nós, por ora, apenas podemos aguardar os desenvolvimentos e ficar pelas palavras de incentivo. À República de Angola, para que cumpra os seus compromissos e actue de forma resoluta e sem receios em matéria de direitos humanos, encerrando este capítulo da história necessário a uma plena reconciliação com uma verdadeira e credível investigação. Às vítimas do 27 de Maio de 1977, para que não deixem de acreditar que a efectiva justiça e o devido reconhecimento um dia serão realidade.

[1] Cf. a informação constante do site do Ministério da Justiça e Direitos Humanos, consultada em 12.07.2021 (http://www.servicos.minjusdh.gov.ao/convencoes-e-tratados), e do site das Nações Unidas, consultada na mesma data (https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/TreatyBodyExternal/Countries.aspx?CountryCode=AGO&Lang=EN)

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