As vantagens de não saber o que dizer

Não saber do que falar também é sinal de que a vida corre bem. Falar é maneira de exorcizar desgraças. É expurgar a dor de costas pela boca.

E eis que, sem grande anúncio, o dia fatídico chegou. Evitei-o ao longo de semanas e semanas, e alcancei um número respeitável de meses sem cair nessa tentação tão certa, tão fatal. Há uns anos, tive um professor que bem me avisou: não há cronista algum que passe muito tempo sem que tenha de escrever uma crónica sobre o facto de não ter tema sobre o qual escrever uma crónica. Esse momento, meus amigos, está aqui.

Quando voltei a escrever nesta formidável coluna digital, propus-me a conseguir fazer, no mínimo, cinquenta e dois pontos finais finais. Agrada-me sobremaneira que tenham sido necessárias vinte e cinco semanas para esbarrar nesta dificuldade temática intransponível. Mais vale assumi-la, é o que é.

É claro que há catadupas de temas sobre os quais podia falar. A silly season não é desculpa, porque a silly season deixou de existir há um par de anos. E o que é certo é que poderia escrever sobre o caso mais badalado da Justiça das últimas semanas, mas não sou jurista. Também podia falar sobre Luís Filipe Vieira e a sua teimosia em manter-se preso ao mandato, mas não sou benfiquista. À falta de outro assunto, evidentemente que poderia lançar a escada àquele assunto de que todos falamos hoje, para desencalhar conversa, mas não sou epidemiologista.

Mais vale assumir então, que não há nada do que falar, e isso não se elogia o suficiente nestes tempos em que todos falamos, todos comentamos, todos publicamos, todos usamos as frases-feitas uns dos outros, e ninguém pára para imaginar que uma expressão típica podia ser transformada num termo com outra frescura.

Não saber do que falar está subvalorizado, é preciso dizer. Ainda há dias alguém comentava que chega a ser falta de respeito que nos digam, com um certo descrédito, “estás tão calado” quando fazemos do silêncio o nosso estilo de vida durante um par de horas, mas que seja tão mal-visto darmos um certo chá de exaspero quando alguém está a falar demasiado. Devíamos celebrar o facto de não sabermos o que dizer – é sinal claro de que estamos a aprender.

Não saber do que falar também é sinal de que a vida corre bem. Falar é maneira de exorcizar desgraças. É expurgar a dor de costas pela boca. É querer dizer que, caso deus existisse, teria criado alimentos que, sendo deliciosos, também fariam bem à saúde. Um naco de toucinho saudável ou uma baba de camelo que, quanto mais se come, mais elimina o colesterol, sei lá. Ora aqui está um bom tema para crónica, agora que reparo. Vou anotar. E para a semana regresso, mas dessa vez com um tema bem definido, que a pessoa quando quer falar sobre o nada, acaba a falar sobre tudo.

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