Um poema

Ser grato tem que se lhe diga: é um dos últimos degraus de uma longa escada. Podemos ser gratos por não termos sentido angústia num certo dia. E já é tanto.

Foto
"É fácil cair no erro de tomar a vida por garantida e com isso torna-la baça" Mag Rodrigues

Eram muitos. Andavam sempre juntos, agarrados uns aos outros. Devo ter perguntado um dia à minha mãe por que razão tinham todos eles a mesma cara e a minha mãe explicou que os pais eram primos direitos: todos os filhos tinham nascido com graves problemas cognitivos e físicos. A mesma cara estava decalcada em cada um deles. Juntos eram duas mãos cheias. Sem grandes diferenças de tamanho.

De entre tantos irmãos havia uma rapariga mais velha. Não me peçam que aluda à ciência para explicar o que uma criança apenas vê, mas ela parecia, de todos, a mais capaz. Podia ser só impressão de quem os espreitava a medo. Eu ficava assustada quando os via encher a rua naquele andar cambaleante que ainda consigo reproduzir. Muitos, todos, agarrados. Apoiando-se sem saber. Nunca ninguém disse àqueles pais o que poderia acontecer e eles foram vivendo. Insistindo. Criando uma família. Aquela família da qual me lembro até hoje.

A rapariga mais velha entrou um dia na retina de um homem bom. Trabalhava na câmara, tinha nada para lhe oferecer e ela, a ele, o mesmo. Eu ia escrever que ela ainda tinha menos, mas seria injusta. Nós, independentemente do que somos e de como somos, podemos ter tanto para oferecer aos outros. O coração não se mede pelo raio da cara ou do corpo, pela forma como nascemos, de onde viemos, que nome temos. Ela não tinha quase nada mas encontraram-se. E casaram. E daqui em diante não passo certificados de felicidade sobre o que viveram porque a vida é um dia sim, outro dia não. São muitos dias ‘não’ em que questionamos o que é ser feliz e se o universo é justo connosco. Muitas vezes quando nos sentimos felizes, os mais lúcidos tornam-se gratos. Ser grato tem que se lhe diga: é um dos últimos degraus de uma longa escada. Podemos ser gratos por não termos sentido angústia num certo dia. E já é tanto.

Contra tudo o que estivera previsto, foram um casal debatendo-se com a lógica do amor e da falta dele. Com ela nem sempre a chegar ao mesmo entendimento dele, limitada pelas circunstâncias da nascença, mas ele amava-a muito. Um homem bom que trabalhava e tinha uma mulher que o abraçava e o recebia com um sorriso tímido grata por ter vivido um amor assim. Eu não sei, não sei mesmo, se muitas das vezes que vivemos determinados factos nos damos conta da importância deles, ou se é depois, depois da vida nos roubar partes de nós, que percebemos o bom que foi ter vivido tanto. Talvez seja na falha que nos descobrimos e descobrimos os outros.

Ela morreu, a irmã mais velha do bando que atravessava a minha rua. Pressinto que ele sabia que não teria com ela o tempo todo que as uniões prometem, mas ainda assim quis saber como era viver e amar uma mulher e ela era a tal. Já viram a beleza disto? Sermos os tais mesmo quando os outros nos reduzem a pouco? Mesmo quando olham para nós como sendo menos, diferentes, incapazes?

Na vida, quando as circunstâncias nos surgem limitadas, todos os dias são um poema. De cada gesto pequenino parece voar um pássaro. De cada chegada a casa se faz um infinito recomeço.

É fácil cair no erro de tomar a vida por garantida e com isso torna-la baça.

Gostava de ter conhecido o homem que amou a rapariga, de todos, a mais capaz. Ela a estender-lhe os braços e ele a querer ter nas suas mãos aquele corpo menor que o coração.

Vinham em bando pela rua e eu via-os. Quando passavam à porta de minha casa, eu ficava a pensar como viveriam, se falavam, o que comiam. Que dinheiro lhes trazia a sobrevivência. Que futuro teriam? Talvez fosse cedo para eu pensar em futuro. O meu presente já tinha medos que bastassem para eu não chegar ao futuro.

No futuro dela coube amor e bondade. Um poema nascia todos os dias quando ele chegava a casa.

Corações maiores que a vida.

Sugerir correcção
Comentar