O combate europeu ao frio que nos desune dentro de casa

Porque é que passamos tanto frio em casa? Será assim em toda a União Europeia? Portugueses, suecos e espanhóis partilham as suas experiências.

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Julian Hochgesang/Unsplash

Assim que entra em casa, Vítor Calção veste uma T-shirt. Paulo Pereira anda encasacado e dorme com dois edredões. Dois países, duas realidades opostas de conforto térmico, que reflectem a desigualdade energética na União Europeia. Na Suécia, onde vive Vítor, quase todas as pessoas afirmam que conseguem manter a casa quente. Paulo vive em Portugal, onde muitos dizem o contrário. Na viagem por países que representam as diferenças europeias de conforto energético, é possível descobrir quem até já viva muito próximo do futuro desenhado pela União Europeia (UE): são quase 20% os portugueses incapazes de manter a casa quente no Inverno, quando na Suécia são menos de 2% e em Espanha 7,5%.

Paulo Pereira, de 22 anos, está no carro e a conversa decorre através da plataforma Zoom. “O aquecimento em casa está sempre ligado, mas tenho de dormir com dois edredões, se não quero passar frio”, confessa. E nesse dia de Inverno, na sua cidade, Barreiro, o termómetro marcava 13 graus. No apartamento com cinco divisões onde vive, com mais duas pessoas, só existe um aquecedor eléctrico. “A temperatura que está lá fora é, muitas vezes, a que está também dentro de casa. É mesmo frio”, sublinha. Na União Europeia, Portugal é o segundo país onde há mais pessoas a viverem em casas com más condições. Da humidade que invade os tectos e as paredes até às janelas ou ao soalho podre, os problemas são muitos.

E esse frio faz-se sentir não só nos corpos, mas também nas facturas da electricidade, que acabam por chegar sempre um pouco mais altas. “Quanto mais tempo passamos em casa, mais gastamos”, diz Paulo. Os valores podem atingir os 60 euros por mês. Vítor Calção paga menos pelos consumos que faz. Segundo os dados mais recentes do Eurostat, na Suécia o preço da electricidade é cerca de 15% mais baixo do que em Portugal.

Na casa de Dulce Reis, de 71 anos, também se procura fugir ao frio. O chão de mosaico é uma das principais razões que apontam para o desconforto que sente nos dias mais gelados, na vila de Marinhais, concelho de Santarém, onde em Janeiro a temperatura média é de 10 graus Celsius. A vantagem, confessa, é que no Verão tem a casa mais fresca. Apesar de a vivenda de Dulce ter vidros duplos, aquecimento e uma lareira com recuperador, que nos mostra através da videochamada, anda sempre com “um casaquinho” e um roupão no Inverno. “Mesmo com o aquecimento ligado, não tenho temperaturas de 40 graus para andar de manguinhas curtas, nem pensar.” A dificuldade em reter o calor no interior das habitações é um problema de muitas casas portuguesas, fruto de técnicas de construção pouco eficientes do ponto de vista energético. “Para andar de T-shirt, tinha de ligar tudo!”, garante a ribatejana.

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Paulo, Dulce e Vitor.

Em Hudiksvall, na Suécia, os termómetros marcam 15 graus negativos lá fora. Mas Vítor Calção, há 42 anos a viver na Escandinávia, está de T-shirt durante a entrevista, sempre num tom divertido e animado. “Em casa ando sempre de calções, é raro usar calças, e não tenho frio nenhum”, diz. Situada numa zona rural a 300 quilómetros de Estocolmo, a casa construída em 1959 tem vidros duplos e aquecimento central, alimentado com madeira que aquece a água dos radiadores. Um sistema que tem a funcionar na cave e que faz questão de nos mostrar.

Espanha entre o bom e o mau

Da Suécia, a viagem prossegue até Espanha, onde os indicadores de pobreza energética se aproximam da média europeia e 7,5% das pessoas dizem-se incapazes de manter a casa quente, para uma média europeia de 6,9%. Dois testemunhos, um no campo, outro na cidade, retratam as diferentes situações por detrás desse valor médio.

Pouco habituada às novas formas de comunicar impostas pela pandemia, María Dolores Cobos, de 59 anos, confessa ter tido dificuldades em ligar a câmara do computador. Vive em L’Espluga Calva, Lérida, Espanha, numa casa do século XVIII, com aquecimento central e lareira, mas não se queixa do frio. “É uma casa muito quente, tenho sorte”, diz. No Inverno, a temperatura interior é de 23 a 24 graus, poderia até usar manga curta, mas não gosta. O facto de a casa, virada a sul, receber sol todo o dia e as paredes de pedra terem uma grossura de 60 centímetros são as explicações que encontra para a facilidade com que se mantém quente.

Em Barcelona, a conversa decorre animada com Esther Anaís Lama, novamente à distância, a partir do apartamento onde vive, construído na década de 1950. O salto de quase três séculos em relação à casa de María Dolores não lhe trouxe mais conforto, apesar do aquecimento central a gás e dos vidros duplos. Tal como acontece com Paulo, no Barreiro, quando a temperatura baixa, “está mais frio dentro de casa do que na rua”, confessa Esther.

Os maiores problemas são a humidade e um desequilíbrio na orientação da casa, que concentra o sol apenas em duas paredes. Para Esther, de 31 anos, manter-se confortável significa uma factura elevada de electricidade. No Natal, já chegou a pagar 180 euros. Dados do Eurostat para o primeiro semestre de 2020 revelam que a electricidade em Espanha é mais cara do que em Portugal e na Suécia.

Bem-vindos ao futuro

De regresso à Suécia, Jan Martinsson vive no Bairro de Hammarby Sjöstad, a seis quilómetros de Estocolmo, uma referência para quem se dedica à renovação urbana e um exemplo de sustentabilidade ambiental. Nesta zona residencial, toda a electricidade tem origem em fontes renováveis. O desperdício é reduzido ao mínimo e até o lodo dos esgotos é usado como fertilizante ou convertido em combustível para veículos, quando misturado com resíduos alimentares.

As preocupações dos moradores já estão muito além do conforto dentro de casa, reflectindo uma outra dimensão da desigualdade energética na União Europeia. Conquistado o conforto e até as fontes renováveis, as prioridades são agora a redução do consumo de energia. “Fizemos com que a ventilação do ar fosse aproveitada, mudámos de lâmpadas normais para LED e reduzimos a temperatura na garagem”, conta Jan Martinsson. Num tom sereno, explica que ainda há objectivos a cumprir no condomínio. Querem ir ainda mais longe e contribuir para o objectivo da cidade de Estocolmo de atingir a neutralidade das emissões de dióxido de carbono até 2040.

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Dolores e Esther

Vidros triplos, chão aquecido e radiadores alimentados a água quente em sistema circular são algumas das características do condomínio de 118 apartamentos onde vive Martinsson. Em Hammarby Sjöstad, os apartamentos têm um sistema de ventilação que renova o ar a cada duas horas e alguns usam a energia das bases das casas para aquecimento.

Jan e os vizinhos optam por uma temperatura confortável, mas não demasiado elevada, por razões financeiras, mas também ambientais. “Não temos problema nenhum em aquecer o condomínio todo a 22 graus, mas não é o ideal de um ponto de vista ambiental e custaria também muito dinheiro”, explica.

Nos planos do condomínio onde Martinsson vive também está a diminuição do consumo de água. “Penso que um próximo passo seria tentar dar toda a responsabilidade a quem vive em cada apartamento”, em vez de esta ficar concentrada na gestão do condomínio, considera.

Um frio cultural

É na tradição e na pobreza que se encontram as razões para o frio que se passa em Portugal e a distância a que está de países como a Suécia. Em Portugal vive-se “uma situação que é uma herança do passado”, considera o arquitecto Nuno Martins, especialista em urbanismo. “É mais um casaco, mais um cachecol, mas um xaile, acende-se uma lareira…” E lá se vai enfrentando o frio como se não houvesse alternativa. A lareira acesa e, por trás, “um frio de morte é uma imagem típica do Centro e do Norte de Portugal”.

A mesma linha de raciocínio segue o bastonário da Ordem dos Engenheiros, Carlos Mineiro Aires. “A tradição e a pobreza do país” são os factores que explicam a pobreza energética portuguesa, afirma numa entrevista conduzida via Zoom, tal como a de Nuno Martins.

De acordo com a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação de Edifícios, existem 3,8 milhões de alojamentos residenciais construídos antes de 1990. Ou seja, mais de 60% dos alojamentos, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nasceram antes de existir qualquer tipo de regras de edificação com critérios de conforto. O problema não terminou aqui: até 2018, apenas 9% das casas portuguesas alcançaram a certificação de “muito eficientes energeticamente”. São factos que levam a que grande parte das residências tenham problemas crónicos, como o excesso de humidade e deficiências de isolamento, o que contribui para que quase 20% da população afirme não conseguir aquecer as suas casas.

Resolver os problemas estruturais pode ser muito complicado. No caso das construções mais antigas, o bastonário da Ordem dos Engenheiros receia que “a única solução seja demolir e fazer de novo” e aponta um horizonte de 50 anos para que o conforto térmico se torne uma realidade generalizada no nosso país.

O clima português também surge como um desafio permanente. Carlos Mineiro Aires admite até que um dos problemas pode ser exactamente esse. “Se tivéssemos um clima que fosse sempre quente ou sempre frio, seria mais fácil”, mas em Portugal há regiões que vão dos cinco graus negativos no Inverno a 45 graus positivos no Verão. Amplitudes destas, defende, só podem ser enfrentadas “através de aquecimento e, se for eléctrico, é uma fortuna”.

Para o arquitecto Nuno Martins, um dos maiores problemas de construção em Portugal é o deficiente isolamento dos edifícios. Para ser de qualidade, este tem de impedir a transferência de temperatura entre o interior e o exterior, impedindo que o ar frio entre pelas paredes externas e o calor saia para fora de casa, evitando, assim, que as famílias passem frio enquanto jantam ou vêem televisão no Inverno.

Na Suécia, sempre se deu atenção ao isolamento das habitações, uma exigência imposta pelo clima do país, uma vez que a temperatura exterior pode atingir os 20 graus negativos. Por essa razão, explica Carlos Mineiro Aires, “as casas foram concebidas para terem um sistema de aquecimento, que habitualmente é do condomínio”, tal como acontece no apartamento de Jan Martinsson, em Hammarby Sjöstad. Apesar de Espanha estar alinhada com a média europeia em termos de conforto térmico, Nuno Martins considera que a situação vivida do outro lado da fronteira “é igual à de Portugal ou às vezes pior”.

Nuno Martins considera que em Portugal já existe uma maior consciência da necessidade de isolar melhor as casas. E dá um exemplo. “Hoje, se se dirigir a uma casa que faz alumínios e mandar fazer uma janela, eles até já presumem que queira vidros duplos, depois ainda lhe vão perguntar se quer caixilharia com ou sem corte térmico”, pormenores que podem fazer toda a diferença para alcançar um equilíbrio de temperatura no interior da habitação. Esta progressiva consciencialização, por parte de quem oferece os serviços de construção e dos cidadãos em geral, pode contribuir para facilitar a concretização das medidas que Portugal tem vindo a adoptar e que estão na agenda da União Europeia.

É na tradição e não apenas na pobreza que se encontram as razões para o frio que se passa em Portugal e a distância a que está de países como a Suécia. Os dados mostram que países mais pobres do que Portugal conseguem ter casas mais confortáveis. A Bulgária e a Lituânia são os únicos que, sendo mais pobres do que Portugal, registam um maior número de pessoas a afirmarem ter dificuldades em enfrentar o Inverno.

Para Portugal, o Pacto Ecológico Europeu significa, ao mesmo tempo, melhorar o conforto energético, combater as desigualdades, ser mais amigo do ambiente e reduzir a dependência de fontes de energia que não produz. Casas amigas do ambiente e da igualdade exigem resolver o problema das más construções, dos baixos rendimentos e de energia cara e poluente. A Suécia, como mostraram Jan Martinsson e Vítor Calção, já fez boa parte desse caminho. Agora é a vez de libertar os portugueses da “cultura da mantinha”.


Texto editado por Ana Maria Henriques


O Combate Europeu ao Frio que nos Desune dentro de Casa​ é uma reportagem da autoria de Bianca Gregório, Inês Sousa, Maria Nunes e Talismã Xavier, estudantes da licenciatura em Comunicação e Jornalismo (DCC/ECATI) da Universidade Lusófona, realizada no âmbito da iniciativa ReportEU da Comissão Europeia em Portugal.

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