Dilemas democráticos e o cadastro ciganofóbico de Ventura

Identificar e combater discursos e práticas racistas que já fazem parte do imaginário de cidadãos comuns, constantemente instrumentalizados pela extrema-direita para fins morais e/ou políticos, deveria constituir-se como um dever de qualquer partido político que se auto intitule democrático.

O VII Conselho Nacional do partido de extrema-direita Chega, que terminou no último sábado, 4 de julho, oficializou a posição do seu líder André Ventura em defesa da criação de um cadastro étnico racial para identificar os problemas que designa como “subsidiodependência” em Portugal. Ao passo que o presidente do partido rejeita que a proposta seja racista, defende o que chama de uma “subsidiodependência crónica, passiva e quase voluntária” de pessoas racializadas, num discurso que claramente se dirige às comunidades roma/ciganas.

A defesa pública do racismo e o silêncio dos partidos democráticos diante de tal proposta a pretexto de não dar visibilidade à extrema-direita reacende o debate sobre qual estratégia é mais eficaz: é preciso ignorar ou combater no espaço público os discursos racistas da extrema-direita? O eleitoralismo e a tentativa de não polemizar contra possíveis votantes sem dúvidas pesa nessa decisão, mas também direciona os reais interesses políticos/ideológicos dos partidos. Em última análise está o reconhecimento: em defesa de quem e para quem se faz democracia?

Para além de estratégias de política eleitoral, o debate à volta da recolha de dados étnico-raciais é amplo dentro dos movimentos sociais. Parte do movimento antirracista já há algum tempo considera importante essa catalogação. Contudo, na contramão da proposta do Chega, o objetivo de introduzir essas informações nos censos é sobretudo o de reconhecer discriminações e construir políticas públicas direcionadas a partir dos resultados obtidos. Em contrapartida, muitos, descrentes da proteção do Estado e do seu real interesse em promover políticas públicas de proteção às minorias sociais, receiam que esses dados possam ser manipulados para uso de propaganda de extrema-direita e sirvam como base para políticas racistas.

Não há dúvidas que a discussão à volta desse tema é ampla, mas é exatamente por isso que precisa ser enfrentada. Considerada como a maior minoria étnica da Europa, a população cigana/roma é declarada por muitos estudiosos como a mais perseguida e vítima de preconceitos. Desde antes dos horrores do Holocausto até aos dias atuais, vê-se confrontada com o abandono. A exclusão social imposta à população roma em Portugal está na origem de muitos discursos xenófobos e racistas antigos que ganham força atualmente, na medida em que se constituem como desumanos.

Identificar e combater discursos e práticas racistas que já fazem parte do imaginário de cidadãos comuns, constantemente instrumentalizados pela extrema-direita para fins morais e/ou políticos, deveria constituir-se como um dever de qualquer partido político que se auto intitule democrático. Se a história não pertence ao passado, o papel das estruturas sociais e políticas que intencionalmente, ou por omissão, são responsáveis diretos, ou indiretos, pelo aumento da vigilância do corpo racializado, fazem com que o anti ciganismo crie um perpétuo estado de exceção. Na busca por compreender esse mal sistêmico de forma orgânica, é relevante considerar que mesmo a auto preservação, o sustento ou a conformidade, em última instância, podem resguardar a intenção consciente de infligir deliberadamente danos a outras pessoas.

Neste interregno, a figura de André Ventura e da extrema-direita portuguesa são catalisadores desse imaginário que é instrumentalizado num discurso populista e violentamente ciganofóbico para crescer eleitoralmente.

Segundo a pesquisa europeia sobre minorias e discriminações de 2017 – EU-MIDIS II –, 61% das pessoas pertencentes à comunidade cigana em Portugal sentiam-se discriminadas; a taxa mais alta de todos os países europeus. A investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Silvia Rodríguez Maeso (2014), argumenta como até agora a ciganofobia ilustra a dificuldade de abordar a questão do racismo na sociedade portuguesa. No quadro das políticas públicas, os problemas estruturais do racismo são frequentemente despolitizados e individualizados pelo foco em pressupostas características “do outro”. Em vez de reconhecer o racismo estrutural presente na sociedade, o “problema dos ciganos” é abordado em termos de “empoderamento”, “oportunidades”, “integração “e “interculturalidade”, camuflando um problema social e político que precisa ser enfrentado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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