Portugal não tem médicos a menos. Tem é falta de planeamento

Só quando abandonarmos o discurso fácil do aumento de vagas, que mais não é que uma solução vazia, colocaremos um ponto final no verdadeiro problema. Os estudantes de Medicina, futuros médicos, querem fazer parte e contribuir para a solução.

Junho e julho. São estes os meses em que, ano após ano, se aborda o número de vagas para ingresso no curso de Medicina. E estes são também os meses em que inevitavelmente assistimos, sem qualquer fundamento, à insistência da tutela em propor o seu aumento.

Este ano, pese embora a pronta resposta das Escolas Médicas Portuguesas em não aumentar o número de estudantes, assistimos a uma originalidade por parte da tutela que propõe a abertura de novas Faculdades de Medicina.

Num momento em que enaltecemos os esforços dos profissionais de saúde e em que são considerados um pilar na prestação de cuidados à população, é surpreendente o aparecimento deste tipo de discurso, revelador de um cabal desconhecimento das etapas da formação médica, dos seus desafios e implicações.

A formação de um médico é um processo moroso, que responde ao objetivo primordial de formar um profissional de qualidade, capaz de prestar à população os melhores cuidados de saúde, de forma diferenciada. Inicia-se nas Escolas Médicas, num curso de Mestrado Integrado em Medicina com a duração de seis anos, sendo esta formação pré-graduada tutelada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. De seguida, o já médico, passa por um ano de Formação Geral e mais quatro a seis anos de Formação Especializada, finda a qual se torna um médico especialista e com a sua formação completa, processo este tutelado pelo Ministério da Saúde. Portanto, em média, a formação completa de um médico decorre ao longo de 11 a 13 anos.

No decorrer da sua formação, tem que adquirir competências clínicas e realizar diversos procedimentos e gestos clínicos. A formação médica é um aspecto absolutamente crucial na Medicina porque é indissociável da prática médica. Na verdade, não há Medicina, não existem médicos sem formação médica. Logo, quanto melhor for a Formação Médica, melhor será a qualidade da prática médica, e melhores serão os resultados em saúde e a qualidade de vida dos nossos doentes.

Então, por que é que ao aumentar o número de estudantes de Medicina colocamos em causa a qualidade da formação e, consequentemente, da prática médica de amanhã? A resposta é simples: porque a simulação da prática médica é um pilar essencial como ferramenta formativa.

Ao aumentar o número de estudantes de Medicina, diminuímos o número de oportunidades de prática de cada estudante num certo procedimento, afetando, inerentemente, a competência clínica do estudante e médico em formação. Ao mesmo tempo, aumentamos o número de alunos em contacto com um mesmo doente, colocando igualmente o doente num papel desconfortável e não ético, num momento em que se encontra fragilizado.

Aliás, as oito Escolas Médicas Portuguesas há muito que têm vindo a alertar que se encontram no limite das suas capacidades formativas, uma vez que não foram concebidas para receber tantos estudantes a cada novo ano. Estas mesmas condições agravaram-se com o contexto de pandemia, em que muitos têm sido os esforços das Faculdades para proporcionar o contacto clínico e prático possível, embora não o desejável.

Por outro lado, assistimos nos últimos anos a concursos de ingresso na Formação Especializada com um maior número de médicos candidatos do que número de vagas existentes. Ora, tendo em conta que é obrigatório todos os médicos ingressarem numa especialidade para completar a sua formação, constata-se facilmente que existem médicos que não têm essa possibilidade, e ficam sem condições de progredir na carreira. Fecham-se-lhes portas: ou acabam por exercer Medicina maioritariamente em contexto de urgência em regime temporário ou pontual, ou repetem a Prova Nacional de Acesso à formação especializada até conseguirem ingressar numa especialidade, ou inclusivamente, alteram o seu rumo profissional e procuram carreiras alternativas à Medicina. Consideremos ainda a tendência crescente para procurarem oportunidades de ingressar numa especialidade e de completar a sua formação no estrangeiro, acabando por abandonar o país, um claro desinvestimento de Portugal nos seus recursos qualificados.

Neste sentido, é importante desmistificar um erro de perceção, bastante comum: um médico que conclua com sucesso o curso de Medicina não pode exercer Medicina Geral e Familiar, uma vez que esta é per si uma especialidade. Naturalmente se compreende que aumentar o número de estudantes de Medicina, e consequentemente o número de médicos recém-formados, contribui somente para aumentar o número de candidatos a ingresso na Especialidade que não vão ter chance de concluir a sua formação. Logo, mais estudantes de Medicina não se traduzirá num maior número de médicos a exercer em pleno.

Posto isto, será que o aumento de vagas nos cursos de Medicina e abertura de novas Escolas Médicas representam soluções reais? Não, bem pelo contrário. Este caminho é sim um atalho para degradar as condições atuais da formação médica, qualidade de formação essa que tem implicações diretas na prestação dos cuidados de saúde no futuro. Apesar das respostas aos problemas de recursos humanos médicos não passarem por estas medidas, sem dúvida que é da maior importância e urgência endereçar esforços em torno dos recursos humanos no setor da saúde e do seu planeamento.

Os números e os dados da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico relativos a Portugal evidenciam precisamente o oposto da aparente sensação de falta de médicos, sentimento tão comum à maior parte da população.

São efetivamente necessárias soluções urgentes para responder às necessidades da comunidade. Do ponto de vista da formação médica, estas só podem surgir quando deixarmos de encarar o curso de Medicina (Ensino Superior) e Internato Médico como duas componentes isoladas, mas, ao invés disso, perspetivar como um continuum, promovendo a interligação e planeamento entre os dois ministérios que tutelam esta formação.

Precisamos de um plano que passa pela compreensão do atual cenário (quantos profissionais temos, onde, porque motivo estão a sair do SNS, entre tantos outros aspetos), pela identificação das falhas e pela ativação de resoluções que as combatam, medidas acompanhadas de uma valorização dos profissionais. Para isso, precisamos de planear e identificar as necessidades da população a longo prazo e antecipar, deste modo, a quantidade de médicos para as suprir. Só venceremos este combate quando deixarmos de reagir, e passarmos a antecipar. Só quando abandonarmos o discurso fácil do aumento de vagas, que mais não é que uma solução vazia, colocaremos um ponto final no verdadeiro problema.

Os estudantes de Medicina, futuros médicos, querem fazer parte e contribuir para a solução. Acreditamos que, com todas as entidades relacionadas com a formação médica sentadas à mesa e comunicando eficazmente, será possível alcançar soluções que respondam às necessidades da comunidade. Afinal, estamos todos focados no mesmo objetivo, o de garantir o acesso aos melhores cuidados de saúde possíveis.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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