Hospitais públicos “versus” privados, competitivos ou complementares?

Conheci médicos e cirurgiões dedicados e de excelente qualidade no sector público e no privado e de igual modo médicos de deficiente qualidade, ética e profissional, em qualquer dos casos. É inquestionavelmente a qualidade dos profissionais que vem a determinar, em última instância, o valor e a idoneidade do meio em que trabalham.

A já longa controvérsia que existe sobre os méritos e deméritos dos hospitais públicos “versus” privados é uma daquelas questões, entre muitas, que fazem parte do universo de temas polémicos e recorrentes que gravitam em torno da prática da medicina e que está longe de receber uma abordagem consensual.

Baseado numa vasta experiência de vida repartida simultaneamente por ambos os modelos, sinto encontrar-me em condições de exprimir a minha opinião sobre o carácter competitivo ou complementar da hospitalização pública “versus” privada, que julgo possa ter algum interesse, sobretudo para todos aqueles, médicos ou enfermeiros, mas também administradores, gestores e economistas da saúde, que ao longo dos tempos se têm dedicado ao tema.

Origens, natureza e diferenças fundamentais

Os hospitais públicos e os privados no nosso país e em qualquer outro país em que coexistem exprimem duas concepções e realidades distintas, que visam prosseguir o mesmo objectivo – tratar a doença e restituir a saúde aos cidadãos –, mas que são orgânica e estruturalmente diferentes e por isso difíceis de comparar, na sua globalidade.

Reconhece-se que têm afinidades e pontos comuns, por vezes complementares, mas também têm diferenças e desigualdades enormes, não obstante ser comum o objectivo que prosseguem, como já salientei.

De facto, são marcantes e profundas as diferenças no que diz respeito à sua origem, essência e natureza, bem como aos meios e recursos, humanos e materiais de que se servem, assim como as populações de doentes que tratam.

Do ponto de vista conceptual, o hospital público presta, desde os primórdios, um serviço à comunidade, que é presentemente um dever constitucional, que se integra no conjunto das obrigações assumidas pelo designado “Estado Social”, materializado após a II Guerra Mundial e liderado inicialmente pela Grã-Bretanha. É pois um serviço público, de acesso universal e tendencialmente gratuito, que tem por fim último a pessoa do doente e a sua circunstância – a satisfação das necessidades assistenciais e a recuperação da saúde dos que a ele acorrem.

Em oposição a este modelo, o hospital privado, concebido e liderado pela iniciativa privada, presta igualmente um serviço à comunidade que é, porém, remunerado por actos e por pessoa e é por isso selectivo, pois depende da capacidade económica e acessibilidade do doente, directa ou indirectamente, através de sistemas de seguros ou convenções e visa a satisfação última dos seus proprietários e accionistas.

Observados nesta perspectiva, não poderia haver duas concepções mais díspares e, aparentemente, antagónicas. Não pretendo dissertar agora sobre os atributos e implicações filosóficas ou ideológicas que gravitam em torno da sua essência, mas aproveito para afirmar que não tenho preconceitos sobre qualquer um destes dois modelos, paradigma da sociedade em que vivemos, que felizmente é livre, tolerante e democrática.

De um ponto de vista profissional médico direi, baseado na minha experiência de cerca de cinco décadas de vivência, intensa e apaixonada, de ambos os modelos, que o exercício do acto médico e dos seus pressupostos, exigências e atributos, científicos, éticos e deontológicos, não está em causa. Conheci médicos e cirurgiões dedicados e de excelente qualidade no sector público e no privado e de igual modo médicos de deficiente qualidade, ética e profissional, em qualquer dos casos. É inquestionavelmente a qualidade dos profissionais que vem a determinar, em última instância, o valor e a idoneidade do meio em que trabalham, seja no sector público, seja no privado.

O vínculo profissional à instituição e a forma mais ou menos abrangente que o caracteriza, o nível remuneratório, bem como o regime de prestação de serviços (tempo completo ou parcial), tem com certeza reflexos na qualidade da assistência e no grau de disponibilidade para o exercício de outras actividades correlativas, como é o caso do ensino ou da investigação e, neste contexto, os hospitais públicos são beneficiados em relação aos privados. De igual forma, a possibilidade da progressão e ascensão aos graus mais elevados da carreira médica, mediante a prestação de provas, continua a ser, embora de forma menos vincada na actualidade, um factor estimulante e motivador que os profissionais poderão ainda encontrar na hospitalização pública e que não tem, ainda, contrapartida na hospitalização privada.

Do ponto de vista da gestão e administração, as diferenças voltam a ser significativas, mas a minha opinião como clínico está seguramente muito distanciada da experiência vivida pelos seus gestores e administradores. A sobrevivência dos hospitais privados e naturalmente de cada projecto depende em última instância dos seus investidores e gestores, da sua competência e dos resultados positivos que lhes conferem sustentabilidade. Todos temem e lutam contra o espectro da insolvência e por isso têm que investir, prioritariamente, na criatividade, na inovação e na flexibilidade e gerir os recursos humanos e materiais com rigor e parcimónia.

No caso do sector público, o Estado tem-se revelado, na generalidade e não só na área da saúde, como um deficiente gestor, rígido e pouco criativo, acumulando enormes resultados deficitários e consequentes dívidas crescentes. Todavia, e sob a mão protectora do Estado, que somos todos nós, nunca nenhum hospital público encerrou as suas portas por falência financeira.

Duas “medicinas” distintas

Do ponto de vista do doente, as diferenças voltam a ser marcantes: o hospital público é geral, tem uma acessibilidade universal e equinânime, sem restrições de qualquer natureza, mas a resposta às solicitações é muitas vezes lenta e ultrapassa frequentes vezes os limites do razoável, quando não do desesperante.

Pelo contrário, o hospital privado é selectivo, tem uma acessibilidade restrita e a resposta é geralmente rápida, ou imediata. Tem ainda o privilégio único de poder seleccionar os doentes em função da sua patologia: algumas entidades não são geralmente tratadas pela hospitalização privada, tais como doenças infecto-contagiosas, sida, demências, patologias e cirurgias complexas, hemodiálise e transplante de órgãos, patologia neonatal ou prematuridade e grande traumatologia, entre outras, que não têm alternativa à hospitalização pública, consubstanciando o que se designa comummente por “selecção adversa”.

Mas, independentemente desse facto, importa enaltecer aquele que é, porventura, o aspecto mais relevante das diferenças entre hospital público e privado, na óptica do doente – refiro-me ao privilégio da escolha livre do médico, da equipa ou da instituição, baseada nesse sentimento inestimável que é a confiança (um valor hipocrático) e que prevalece na opção pelo hospital privado – no qual recebe frequentemente a designação personalizada de “cliente”, em oposição ao hospital público, onde o doente geralmente não desfruta do direito de escolha do hospital, do serviço, do médico ou da equipa e recebe a designação burocrático-administrativa de “utente”.

Duas diferenças essenciais me permito ainda acrescentar e enaltecer e elas são formuladas em abono dos hospitais públicos.

A primeira diz respeito ao valor social da cama hospitalar, particularmente num país com uma população envelhecida, com elevados índices de pobreza, de solidão e isolamento, em que o hospital público constitui o último reduto da entreajuda, do bem-estar e do conforto, por vezes nunca antes experimentados. É esta, provavelmente, a tal “medicina romântica” a que no passado aludia o meu saudoso mestre Prof. João Cid dos Santos e que não tem, como é óbvio, contrapartida nem equivalente na hospitalização privada.

Os desafios da formação e educação profissional

A segunda diferença reside no valor pedagógico e educacional dos profissionais médicos e de enfermagem que exercem funções nos hospitais públicos. A sua formação iniciática – actos clínicos, diagnósticos e terapêuticos, nomeadamente invasivos, injecções, algaliações, operações, intervenções cirúrgicas, cateterismos, etc. – é feita primariamente nos hospitais públicos e só depois de adquirida experiência e maturidade, se encontram os seus profissionais em condições de ser recrutados para trabalhar nos hospitais privados.

Temos que reconhecer que os hospitais públicos são ainda, na actualidade e no nosso país, as grandes escolas de formação em certas especialidades clínicas e áreas do conhecimento, sobretudo de médicos e enfermeiros, onde os hospitais privados usufruem do privilégio de seleccionar discricionariamente os mais qualificados, sem que tenham contribuído de algum modo para a sua (por vezes longa e dispendiosa) educação e formação profissional.

Todavia, e ainda no que respeita ao ensino, à medida que os hospitais privados vão progredindo em dimensão, complexidade e diferenciação e desde que disponham de “massa crítica”, ou seja, de médicos predispostos e capazes de se dedicarem ao ensino, enquadrados em planos bem estruturados e integrados, nada impede a que possam participar no ensino pós-graduado, sob controlo e supervisão da Ordem dos Médicos, como já vem sucedendo em casos pontuais, que têm cursado de forma satisfatória.

O presente e o futuro

Em síntese, poderei dizer que no prosseguimento dos seus objectivos, os hospitais públicos e privados se completam, na sociedade em que vivemos, porém, nem sempre de forma justa ou equitativa, em desfavor do sector público, através de mecanismos ou meios de actuação que são mais impostos pelas circunstâncias do que assumidos pacífica ou consensualmente por ambas as partes.

Olhando para o futuro, é bem possível que em consequência do contexto histórico e socioeconómico por que passa a sociedade portuguesa, em que avulta um crescente e preocupante balanço demográfico negativo, com a inevitável sobrecarga assistencial a que os hospitais públicos irão ser submetidos, possam vir a ocorrer dificuldades crescentes para o seu desempenho pleno e satisfatório, assistencial e educativo.

Neste sentido, prevejo que os hospitais privados venham a desenvolver algumas das valências até aqui do âmbito da esfera pública e já anteriormente reportadas e que, estou certo, irão permitir ao sector privado poder vir a desempenhar um papel progressivamente mais relevante, não só na área dos cuidados médicos, mas também da investigação e do ensino da medicina e da enfermagem em Portugal.

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