Quando a Lei permite o preconceito racial

Em Portugal, a aparência pode ser usada como critério para transformar qualquer cidadão em suspeito. Isto não só constitui um atentado à liberdade individual de cada pessoa, como diminui a confiança de comunidades e grupos minoritários nas forças de segurança, por se sentirem desproporcionalmente visados.

De acordo com o estudo "Your rights matter: police stops", publicado este ano pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, imigrantes e pessoas pertencentes a minorias étnico-raciais não só são abordados pela polícia com mais frequência do que a população em geral, como também são revistados com mais frequência e relatam estas abordagens como menos respeitosas. Em Portugal, por exemplo, 92% da população em geral sente que foi tratada de forma educada, enquanto apenas 10% da população cigana e 47% dos imigrantes da África Subsaariana e seus descendentes sentem o mesmo.

Na realidade, para quem não tem pele clara e aparência “europeia”, a situação é conhecida: sem razão aparente, é abordado pelas forças policiais para se identificar, nem sempre de forma mais digna. Em qualquer contexto social, no meio de grandes grupos ou individualmente, as pessoas racializadas são objeto de tratamento específico por parte das autoridades. Numerosos exemplos pessoais demonstram o tratamento abusivo e arbitrário por parte de agentes das forças policiais, alguns deles partilhados na reportagem do jornal PÚBLICO “A lei pinta o suspeito de negro” ou, mais recentemente, num vídeo publicado nas redes sociais. Este último expõe a exigência da identificação de um cidadão, levada a cabo por agentes policiais, de uma forma desrespeitosa e inusitada, com o fundamento no dever do cidadão demonstrar que não se encontrava em situação irregular em território português. Estas situações representam uma intimidação sistemática da população racializada.

Muitos já se terão perguntado qual poderia ser o fundamento legal dessa situação francamente discriminatória, referida no contexto anglo-americano como racial profiling. Pois estas situações, que representam uma intimidação sistemática da população racializada, são validadas pela atual versão do artigo 250.º do Código do Processo Penal, que acaba por ser utilizado como “legitimador” da atuação das forças de segurança.

O n.º 1 do artigo 250.º determina que as autoridades policiais podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, ou de haver contra si mandado de detenção. O problema é que também lhes atribui a competência de proceder à identificação de qualquer pessoa, sempre que existam fundadas suspeitas que “tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional”.

Que critérios devem ser usados para determinar essa fundada suspeita? Nestes pontos, a lei é omissa, deixando assim ao critério individual de cada agente da autoridade a sua interpretação. Como é óbvio, estão criadas as condições para a reprodução de estereótipos étnico-raciais por parte das forças policiais. Em suma, a aparência pode ser usada como critério para transformar qualquer cidadão em suspeito. Isto não só constitui um atentado à liberdade individual de cada pessoa, como diminui a confiança de comunidades e grupos minoritários nas forças de segurança, por se sentirem desproporcionalmente visados.

A norma do artigo 250.º do Código de Processo Penal, ao estender o dever de identificação (que, no limite, pode implicar uma detenção em posto policial por um período de tempo que pode chegar até seis horas) aos indivíduos sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de terem entrado ou permanecerem irregularmente em território nacional, cria uma intersecção entre a política migratória e a política criminal, que não só é ineficaz como inadequada. O Relatório Anual de Segurança Interna de 2020 aponta, precisamente, as ações de identificação de situações de imigração ilegal ou exploração laboral em locais-alvo como forma de combate a estas, sendo inúteis as abordagens arbitrárias na via pública legitimadas pelo artigo n.º 250 e, alegadamente, justificadas pelo combate à imigração ilegal.

Torna-se assim necessário acabar com a fundamentação legal para as abordagens arbitrárias da população racializada. Um primeiro passo importante, neste sentido, parece ser o Projeto de Lei 795/XIV/2.ª que a deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira submeteu à Assembleia da República. Este projeto de lei, que visa retirar a legalidade à abordagem discricionária de pessoas racializadas, com base em supostos indícios que “tenham penetrado ou permaneçam irregularmente em território nacional”, também é visado por uma petição pública recente que já juntou o apoio de centenas de pessoas. 

Por considerarmos urgente promover uma atuação imparcial, adequada e objetiva das forças policiais, torna-se imperioso eliminar esta margem arbitrária e estereotipada da legislação penal, que acaba por servir de subterfúgio para a atuação policial perante as minorias étnicas. O projeto de lei atualmente discutido na Assembleia da República será um progresso imprescindível no sentido de acabar com um policiamento repressivo, não raramente acompanhado por revistas humilhantes que configura, à partida, a pessoa negra, cigana ou de outra minoria étnica como desordeira ou criminosa, em franca negação da pluralidade da sociedade portuguesa atual.

Cabe-nos a todas e a todos exigir ao legislador a introdução das alterações, que resultarão no reforço dos direitos igualitários das minorias e na construção de uma sociedade mais igualitária e inclusiva.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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