O mistério

No areal, de cabelo molhado, e ouvido encostado à toalha que parecia ter as batidas do coração (era a força das ondas) eu pensava que aquele momento acabaria rapidamente e temia que nunca mais fosse feliz outra vez assim. Como naquela tarde.

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"Como naquelas tardes que se repetiram meses, anos e que agora me parecem só uma" Mag Rodrigues

Agora sei que arrumei a infância num Verão. Em vários, mas um Verão é longo: cabe tanta vida nele.

Íamos para a praia fazendo, talvez, dois quilómetros a pé. Quando já estávamos muito perto do mar, eu olhava a medo para a rua estreita de onde um dia tinha vindo uma notícia que me faz estremecer ainda hoje: três crianças muito pequenas tinham sido abandonadas pelos pais numa casa ali mesmo. Eram três miúdos sem idade para que pudessem decidir a que horas podiam desligar a luz à noite ou a que horas acordar pela manhã. Os três foram encontrados vivos várias semanas depois de terem sido deixados, entre os escombros de algo gigante chamado ‘abandono’. Um cão tinha ficado de guarda.

O caso passou-se há mais de 40 anos e eu lembro-me da estranheza que me percorreu o corpo no momento em que a minha mãe me contou. À noite, sozinha, pensava como se poderiam ter organizado entre o lixo que faziam, o cão que os mimava, os pais que já ali não estavam. Passei anos a tentar descodificar isto. Procurei notícias, mas mais do que isso, procurei explicações. Nunca as encontrei. Quando dois adultos deixam três filhos à sua sorte, vão à procura de quê?

Ia para a praia e olhava a medo para a rua pequenina como se ela tivesse cristalizado o momento ali vivido. Como se aquelas crianças continuassem ali. Como se nunca tivessem crescido.

Como se o lixo transbordasse porta fora. Como se o cão estivesse a guardá-los até ao fim da possibilidade.

Nunca soube o que se passou depois. O depois é até hoje. Como o fim do Verão.

Eu nunca mais consegui amar oVverão como quando ele durava realmente três meses e parte do tempo era construído na praia. Se hoje tivesse de levar uma memória da infância, era fácil emoldurá-la numa polaróide rápida que se tira no momento depois do banho e cresce com o arrepio térmico até à areia e se encosta a nós como o ouvido à toalha. Os dentes batem uns nos outros mas sabes que dali a nada estarás a sentir que o sol te cobre e só tu, pensas que só tu, sabes o prazer que isso te dá. Agora mesmo outros lêem isto e lembram-se desse prazer da infância. É universal. Era só uma tarde ao sol sabendo que ainda teríamos dois meses e meio até esse conforto desaparecer. Ainda não desapareceu da minha memória.

Depois ecoava pelo areal uma mulher vestida de branco, talvez fosse sarja?, e ela trazia uma velha lata amarela, gasta pelo sol, onde se escondia tudo o que eu desejava. Eu desejava pouco. Só a língua da sogra tostada que se ergueria da lata ou aquele esterlicado pacote de papel vegetal com batatinhas fritas à inglesa. Era esse o eco pela praia. Onde ficaram essas palavras? Essa lata?

No areal, de cabelo molhado, e ouvido encostado à toalha que parecia ter as batidas do coração (era a força das ondas) eu pensava que aquele momento acabaria rapidamente e temia que nunca mais fosse feliz outra vez assim. Como naquela tarde. Como naquelas tardes que se repetiram meses, anos e que agora me parecem só uma.

As tardes foram uma e o Verão, outro. E o mistério da rua estreita com três crianças entregues à sua sorte, o maior livro que nunca li estendida na toalha. Sim, esse podia ter sido o livro de aventuras que eu tirava do saco onde estava a toalha e uma moeda que fazia a lata da senhora de branco abrir-se, mas esse livro nunca existiu. Foi um mistério nunca resolvido na minha cabeça apesar de saber que ele existiu.

Eram três crianças sozinhas num amontoado de lixo e um cão a guardá-las. Acho que não veio nos jornais. Acho que as televisões nunca souberam. Havia o pudor. Os adultos não tinham solução para ver o mistério resolvido, e nós, os miúdos (como eles) não percebíamos como alguma vez aquilo podia ter acontecido.

Vejo ainda agora a rua das casas que eram amarelas como a lata de onde saíam as únicas coisas que eu desejava. A rua que durante anos calou esse mistério que vive até hoje na minha cabeça.

Neste presente desavergonhado saberíamos o nome de todos. Até do cão que os guardou.

Ali permaneceram os quatro. Outra polaróide que guardo, mesmo que não haja nomes, rostos, futuro.

No Verão da minha infância coube tanta coisa.

O mistério, sobretudo.

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