E depois de 30 de Junho?

Porque, e por mais que queiramos, e queremos, a partir de 1 de Julho quem não tiver a sua situação regularizada por culpa da secretaria receia não poder arrendar, trabalhar ou candidatar-se a um emprego, aceder a cuidados de saúde, apoios sociais ou educação, criar uma conta bancária, viajar, em suma viver na sociedade que um dia, não muito distante, teve os braços abertos, ou talvez não.

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Alexander Andrews/Unsplash

Falta menos de uma semana para a data limite de 30 de Junho, de vital importância para quem pretenda assegurar o estatuto de residente permanente no Reino Unido.

Com centenas de milhares de candidaturas ainda pendentes e/ou por realizar, que garantias há para quem ainda não tem o seu processo resolvido uma vez ultrapassada a data limite? A pergunta, válida, e a preocupação, óbvia, não deixa ninguém sossegado se por algum azar tiver um mau encontro com as autoridades ou, por razões de saúde, necessitar de cuidados médicos, apenas para citar alguns exemplos. Seguindo os acontecimentos de Maio último, seremos de imediato considerados ilegais e, por conseguinte, um perigo para quem aqui vive, perigo esse apenas resolúvel através da detenção por tempo incerto até à chegada do avião que nos remeta de volta ao país de origem?

E quando o país de origem não existe, como é o caso de quem aqui nasceu mas cujos pais ainda não têm o estatuto de residência permanente?

Para já não falar dos mesmos pais e/ou avós que por aqui viverem há décadas desconhecem os processos burocráticos e informáticos necessários para garantir a continuidade das suas vidas em segurança. Para este grupo da população, a informação e ajuda pecam sempre por defeito.

Num país e numa cultura pouco tolerantes para quem nervosa e atabalhoadamente tem, literalmente, cinco segundos para explicar em bom inglês o que se passa com os nossos papéis, quais papéis, os papéis, a probabilidade e o medo de nos vermos algemados, humilhados, incomunicáveis entre quatro paredes não são apenas palpáveis, estão bem presentes em cada um de nós, culpados sim de um dia deixar tudo para trás à procura de uma vida melhor.

Porque, e por mais que queiramos, e queremos, a partir de 1 de Julho quem não tiver a sua situação regularizada por culpa da secretaria receia não poder arrendar, trabalhar ou candidatar-se a um emprego, aceder a cuidados de saúde, apoios sociais ou educação, criar uma conta bancária, viajar, em suma viver na sociedade que um dia, não muito distante, teve os braços abertos, ou talvez não, nós ainda pensámos ver os braços abertos, mas se calhar foi só isso, um pensamento, uma fugaz imagem e a imaginação a pregar-nos partidas. De modo a responder a estas e outras perguntas, o Governo britânico publicou uma série de linhas orientadoras num assomo de bom senso e boa vontade, tão em falta nos dias que correm, resultado de uma aprendizagem à força fruto dos erros recentes.

De acordo com estas linhas orientadoras, os casos excepcionais de idosos, crianças e jovens adultos oriundos de países estrangeiros, bem como os casos de pessoas com incapacidade física e/ou mental, terão direito a mais 28 dias de mora para submeter a candidatura ao estatuto de residente no Reino Unido. De igual modo, a todos quantos tenham o processo pendente será agora atribuído um certificado de candidatura, certificado esse válido para efeitos de habitação, trabalho, educação, saúde, entre outros. E se até meados de Maio senhorios e empregadores estavam sujeitos a multas e acções judiciais caso não confirmassem o estatuto legal de inquilinos e trabalhadores, tal requerimento vem agora cair por terra.

Com mais de 100 mil processos pendentes em Londres num total de 300 mil a nível nacional e 30 de Junho cada vez mais próximo, a ansiedade de quem procura a certeza e segurança de um futuro em solo britânico tem sido mais do que justificável.

Infelizmente, e não obstante a mão agora estendida da parte do Governo de Sua Majestade, o mal já há muito está feito. Num processo sempre incerto e com constantes mudanças de direcção legislativa, de modo a jogar pelo seguro do lado de quem arrenda e/ou emprega, hoje em dia acesso a habitação e emprego só mesmo para britânicos e irlandeses, estes últimos por meio de acordos pré-existentes entre o Reino Unido e a República da Irlanda.

O resultado? Desde 2019 uma redução de 36% no número de cidadãos da União Europeia à procura de trabalho na velha Albion.

E, ironia das ironias, a concomitante escassez de profissionais em áreas tão diversas como enfermagem, metalurgia, veterinária, auxiliares de geriatria mais o impacto na recuperação económica de um país onde empregadores outrora apoiantes do Brexit vêm agora a público exigir vistos de trabalho para cidadãos europeus de modo a suprir as necessidades laborais.

E independentemente dos tiros no pé da parte de um país a braços com as consequências das suas próprias acções, a mesma pergunta: e depois de 30 de Junho?

Se o Governo procura, por um lado, assegurar os corpos e espíritos de quem ansiosamente espera pelo papel, qual papel, o papel, a polícia, os patrões, os senhorios, os médicos, os assistentes sociais, entre tantos outros, não são o governo, são a cultura de uma nação, cultura essa ciente de como uma vez ultrapassada mais uma data limite os direitos, os nossos direitos, deixam de existir.

Numa terra onde para além de batatas e maçãs (estas últimas pequenas e ácidas) pouco mais cresce, nada mais restará nesta mesa, de resto mundialmente conhecida pela sua cozinha, ou antes pela falta dela. O Reino Unido? Ficará cada vez mais, e somente, para os britânicos, orgulhosamente sós mas felizmente todos juntos para se poderem aquecer debaixo deste clima inclemente e incessante, tão característico, tão pouco desejável. 

Até lá, todas as boas notícias são bem-vindas, o prolongamento de prazos é mais do que uma boa medida, é a esperança e a luz ao fundo do túnel para centenas de milhares, a esperança de ficar e a esperança de viver em paz para gerações inteiras, sem que ninguém nos importune por culpa de um sotaque ou cor de pele diferente. Assim esperamos.

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