O sorriso de Gioconda

As rugas são tramadas porque marcam as lágrimas e todos os combates feitos com aquilo que tentámos mudar sem sucesso.

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"Ocupo-me para que ninguém tome de assalto o meu espaço" Mag Rodrigues

A minha avó dizia: “Mente vazia, oficina do diabo.” A minha mãe repete-o. Eu lembro-me quase todos os dias disto de forma a impedir que as assoalhadas vagas da minha cabeça não se deixem ocupar pelo infortúnio.

Os meus amigos mais velhos insistiram sobre a injustiça de a pandemia lhes ter roubado tempo (restante) de qualidade. Ficámos todos (novos e velhos) presos nessa teia de o tempo pairar sobre nós sem efeito. Nos dias que já foram normais (e não sabíamos) éramos nós a tentar dar-lhe luta. A ocupar o tempo com a vida que nos sobra. Eu acho sempre que o nosso corpo não comporta tanta vida. Uns aborrecem-se mas isso é capricho. Porque ir à luta e viver realmente faz ferida. E nem toda a gente quer exibir as marcas.

“Mente vazia, oficina do diabo.” O tempo que nos resta pode ser tanto e tudo ou pode já ser uma sombra que paira sobre o que foi a juventude e nessas horas vagas que vagueiam sobre nós, o ardiloso vem com ideias: torna-se o senhorio daquilo que entregamos sem resistência. Normalmente é o tempo.

Quando um dia conheci um homem que ia morrer (tinha meio ano pela frente. Na verdade, acabou por ter mais do que um ano) vinha calmo e apaziguado. Sem raiva. Era um homem vaidoso e bonito que medira forças com uma doença e que, a dada altura, teve de entregar as armas de combate. Quando me disse que tinha meio ano pela frente, fui eu que fiquei angustiada. Ele já tinha ocupado as assoalhadas vagas que lhe restavam.

Há muitos anos vi um documentário sobre longevidade onde várias mulheres (porque eram sobretudo mulheres) falavam sobre o segredo da sua longa vida. Eram mulheres solteiras ou viúvas sem consumições de maior. Talvez a maior consumição pudesse ser o tempo, mas esse tinha-se rendido às evidências de ter ali gente destemida que lutava sem medo contra o calendário. Agora mesmo pensei que podíamos ter um contador como os da luz ou da água que marcasse os dias, as horas, o tempo que gastamos. Apontarmos o nosso consumo de vida. Sem consumições de preferência.

Uma das mulheres ouvidas nesse documentário, cara nédia com vários brilhos, dizia sobre o segredo da tal longevidade: “Viver em paz com aquilo que não podemos mudar.” Lembro-me até hoje dela, sem rugas, na brava dança contra o tempo, a caminho dos 100 anos. As rugas são tramadas porque marcam as lágrimas e todos os combates feitos com aquilo que tentámos mudar sem sucesso. (Quero acreditar que por vezes conseguimos.)

Era solteira e escolhera viver sem lutas. Talvez tivessem ficado para trás.

Penso que passamos meia vida em combates múltiplos e infrutíferos mesmo gostando eu de batalhas que possa travar. Gosto de me alistar nas minhas causas e ir à guerra que escolho porque não escolher era entregar a ‘oficina’ a maus alugueres. Os combates que travamos na vida devem ser bem medidos para não nos escudarmos na desculpa de que o mundo conspira contra nós, quando somos nós, na verdade, e na maior parte das vezes, a conspirar contra o mundo. Contra o outro. Nunca aceitando o embate connosco: o mais difícil.

Quando me encontrei com o homem que tinha meio ano de vida pela frente e me pareceu apaziguado, perguntei-lhe se sabia a razão por que se ia embora e ele sem hesitações disse: “Acho que vivi intensamente.” Depois quantificou as namoradas, as viagens e tudo o que tinha descoberto e pareceu-me que a resposta lhe cabia bem. O fato estava preparado.

Vivemos dias tristes. Ainda são tristes porque o medo ainda nos tolhe. Ou tolhe os conscientes. Gostava que nenhuma mente se esvaziasse para ser tomada por pensamentos sombrios ou turvos. Gosto muito da palavra “turvo” para descrever muitas vezes o que sinto em dias que não têm outra cor.

Mesmo em dias turvos, uso batom. Ocupo-me para que ninguém tome de assalto o meu espaço.

Com o tempo apaziguei lutas mas não necessariamente vencida pelo cansaço: aprendi com aquela mulher sábia que há coisas que não podemos mudar e perante as quais quase vale a pena sorrir.

Um sorriso de Gioconda não apaga conflitos. Retira-lhes importância.

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