Esta semana, voltamos à nossa série de entrevistas com criadores e criadoras de podcasts em português. A nossa quarta conversa é com Marco António, autor do podcast Histórias de Portugal e fundador da produtora 366 Ideias.

Como é que um tipo da televisão chega aos podcasts?
Há duas respostas. Uma: o tipo da televisão começou na rádio, e não há amor como o primeiro. A segunda, que é um bocadinho mais estranha de dizer, é que a dada altura fiquei farto da televisão. Continuo a adorar fazer televisão e provavelmente não vou parar de fazer televisão para o resto da minha vida... Mas para as coisas correrem bem normalmente é preciso uma data de factores correrem demasiado bem e isso desgasta muito. Não há como não voltar ao sítio onde era mais feliz, e com isso contrabalançar. Nos podcasts, no áudio, retiro um prazer louco de fazer, uma energia que é quase inesgotável.

Mas a sustentabilidade nos podcasts ainda é complicada em Portugal. Como é que decidiste transformar a 366 Ideias numa produtora de podcasts?
De facto, o modelo de negócio é, na melhor das hipóteses, frágil. No entanto, tenho uma crença, muito idealista, de que há sempre um lugar ao sol para quem é bom, para quem faz as coisas bem feitas. Isto é o Eldorado de um perfeccionista, não é? Tenho gravíssimas discussões entre mim e mim... Para evitar que o eu crítico apareça, o eu produtor, ou realizador, tenta fazer da melhor maneira possível.

Lembro-me de uma vez escreveres no Twitter que do ponto de vista técnico não fazias podcasts, fazias rádio. Queres desenvolver essa ideia?
Faço tudo para que o meu conteúdo, se pudesse passar na rádio, tanto quanto possível não se notasse a diferença de ser podcast. Essa é a fasquia que ponho a mim mesmo como produtor. Com a pandemia foi um filme, quando tivemos que começar a fazer podcasts desta maneira em que dependemos do savoir-faire do outro lado.

Ou a falta de savoir-faire...
Acima de tudo o que não existe. E não tem que existir, porque as pessoas não são profissionais da comunicação, não têm obrigação de saber, ou de ter um microfone USB... O que nós, como produtores, temos fazer é ajudar estas pessoas a fazerem o melhor conteúdo possível, dando o melhor de si. Depois na parte técnica tenho que ajudá-los a chegar ao melhor resultado possível.

Tinhas um estúdio e deixaste de poder usá-lo por causa dos constrangimentos da covid. Como é que foi gravar durante a pandemia?
O estúdio estreou em Janeiro de 2020 para gravar o Globalistas. Em Março, fomos para casa. Uma semana antes do primeiro estado de emergência tinha começado a escrevinhar num papel como é que as pessoas poderiam gravar a sua parte. Lembrava-me de como é que tinha começado o Histórias de Portugal, com um gravador dentro de uma caixa do Ikea com umas mantas... O Portcasts também ajudou com aquele maravilhoso PDF [com dicas de gravação remota], ainda hoje reencaminho para toda a gente que grava comigo. Entretanto já evoluímos muito. No Globalistas, tivemos gravadores de mão para sítios onde o telemóvel estivesse a ser utilizado para fazer a chamada. Depois, foi num Globalistas com o Filipe Caetano e o Rui Tavares como convidado que o Rui pensou num projecto que gostava de voltar a pôr no ar, o Rua do Mundo. Decidiram reunir a equipa e vim para o Rua do Mundo para ser a cola que unia uma data de gente que não sabia fazer podcasts. Depois veio o prémio que o Globalistas recebeu em pandemia. Entretanto têm surgido convites muito interessantes, já aceitei vários. Foi a pandemia que me tornou, acima de tudo, num produtor de áudio.

Como é o teu processo de produção? O que é que encontra quem procura a 366 Ideias?
Tive várias situações diferentes. Já surgiram convites para ser sonoplasta e editor, como aconteceu com Muito mais do que sexo, de que fiz a primeira temporada. Aí o formato estava estanque, eu podia dar alguns inputs, mas era mais uma produção técnica. Outro caso diferente, no Rua do Mundo, é dizerem-me que têm estas pessoas, gostávamos de fazer mais ou menos isto, e aí entra o Marco produtor/autor/criativo. Aí jogo como o meu know how de áudio e até de televisão. Parte do meu papel no Rua do Mundo é dizer-lhes que debatam, mas que sejam regrados a debater. É manter tempos. A questão de fazer pequenos intervalos com as rádios do mundo também ajuda porque, se é um programa mais longo, quero dar a hipótese ao ouvinte de ter um bom ponto de paragem porque a viagem do metro acabou, ou a viagem de carro, ou já acabei de lavar a loiça, e depois oiço o resto.

Como é com outros podcasts?
Há podcasts em que sou chamado para construir alguma coisa. Estou a produzir o 110 Histórias | 110 Objetos, em que há uma ideia geral e em tudo resto deram-me o menino para as mãos para cuidar. Ou seja, a reportagem é feita por mim, o conceito de sonoplastia e de narrativa é trabalhado por mim, sou o autor. Embora o podcast não seja institucionalmente meu, o trabalho documental é meu. E neste também estamos a falar de trabalho de documentário, que é uma coisa raríssima em Portugal. Também há na rádio, normalmente grandes reportagens, acho que o teu trabalho no Memórias de Lisboa e o meu também passam por mudar esse panorama, o Fumaça também faz documentário em áudio, há algumas pessoas a fazer. O que quero é que seja uma linguagem mais popular dentro do universo dos podcasts. Se os podcasts precisam de tempo para amadurecer e até para serem ouvidos, a linguagem documental é ideal.

(foto: Rita Pinto)

Podes falar sobre a produção do Histórias de Portugal?
O ideal - que não é muito exequível, mas o ideal para mim - é sair de casa, com gravador, microfones, material básico de reportagem, e não saber para onde é que vou. Pegar no carro e ir a olhar para as bermas, ou para aquilo que está para lá da berma. A última história que consegui fazer, a primeira história durante a pandemia, nasceu de olhar um pouquinho ao lado da estrada. Vi uma pedra tumular e reparei que no ano seguinte ia passar-se 150 anos sobre a data que lá estava. Isso é o puro olhar para o lado e uma coisa que o Roman Mars do 99% Invisible nos diz a todos para fazer, always read the plaque. Cada placa é uma história, foi lá colocada por um motivo qualquer. E sofro desse mal, leio as placas todas à procura de histórias. A primeira história de todas do Histórias de Portugal foi mesmo isso. Saí de casa com o Tascam, meti-me no IC19 e quando estava em Pêro Pinheiro vi uma carrinha em cima dum poste a 20 metros da altura. E a partir daí o que a história me der é o que gosto de contar. Sinto um privilégio fantástico quando as pessoas abrem uma janelinha ou uma porta da sua vida para me contar da história delas. Há Histórias de Portugal em que não tenho quase que dizer nada, é deixar as declarações das pessoas e sonorizá-las o melhor possível para que a emoção certa... Porque nós não estamos a ver a expressão facial das pessoas. Às vezes a música ajuda-nos a dar uma certa expressão àquela declaração que pode ser entendida de várias formas.

Gravas todo o áudio quando estás no local? Ou tentas complementar com áudio de arquivo?
É muito raro, embora grave sempre que possível áudio para arquivo. Biblioteca paga, não. 99% das vezes quero o som daquele sítio. Depois de a pandemia ter batido, adquiri um microfone de longo alcance para não estar em cima das pessoas, que também me permite captar sons ambiente mais à vontade. Tanto quanto possível, ponho as pessoas a fazer coisas do seu dia-a-dia, que me ajudem a contar a história, apresentar aquela pessoa ao ouvinte. Cheguei a pedir a um emigrante português no País de Gales para se gravar com o telemóvel a contar pedaços do dia. Acertámos uma lista de coisas mínimas e ele acrescentou interesses pessoais, uma sequência maravilhosa dos pássaros... Ele acorda antes de toda a gente e falava-me do dawn chorus, os pássaros que ele ouve e mais ninguém ouve, porque quando toda a gente acorda os pássaros calam-se, ou então o burburinho da localidade acaba por já não permitir ouvir os pássaros. Ele não só gravou-se a si mesmo a falar daquele momento como gravou os pássaros. E fez isso em todas as cenas. Aquele episódio não é meu, é dele.

Quanto fazes um episódio do Histórias de Portugal, passas quanto tempo com aquela pessoa?
Depende muito. Normalmente uma tarde, uma manhã ou até às vezes um dia inteiro. Já aconteceu dois dias.

Qual é o material que gostas de usar?
Comecei com um Tascam DR-05, que tanto pode servir de microfone de mão como para som ambiente, mas só grava numa pista. O microfone incorporado é óptimo, é um microfone stereo muito sensível, para o preço tem um excelente som. Pode ser lá colocado um bom microfone, que foi o que acabei por fazer. Investi num Rode M3, que é direccional e tem um som límpido, límpido. Tive que mandar fazer um cabo numa loja, porque a entrada de microfone externo para aquele gravador é um jack pequenino. Já agora posso fazer um shout out para a Cabicom, é no centro comercial do Cacém. O que o sr António não tiver, arranja. Ele faz tudo por nós. Foi assim que comecei a fazer reportagem com um microfone de mão. Hoje em dia tenho para gravar no terreno um Zoom H6, tem quatro entradas de XLR e grava tudo em faixas autónomas. Também serve de mesa de mistura para uma mesa redonda, de microfone de mão ou som ambiente stereo, para gravar texto de narração... Esse gravador dá para tudo.

Que podcasts que tens gostado de ouvir?
Sou absolutamente vidrado nas histórias do Radiolab, explicam coisas científicas absolutamente inacreditáveis e dificílimas de entender e tornam aquilo numa história de encantar. Também gosto muito de ouvir o Every Little Thing, da Gimlet. Sou fã da forma como se fala de ciência com humor. Sou vidrado em vários podcasts da NPR. A melhor entrevistadora viva no mundo dos podcasts está na NPR, é a Terry Gross, com o Fresh Air. Gosto também de coisas bem escritas e oiço podcasts que me inspiram: gosto muito de ouvir o Memory Palace, do Nate DiMeo; o Everything is Alive é extraordinário, é uma ideia que gostava de ter tido, são objectos dia-a-dia que estão a conversar com uma pessoa; e o Anthropocene Reviewed, do John Green. Ele começou a fazer o podcast até de uma forma escapista dos problemas de saúde mental, e aquilo é absolutamente maravilhoso. Já agora, para nós, geeks: How Sound, que nos ensina até a fazer reportagem, e o Twenty Thousand Hertz, para os nerds do som. Oiçam, vale a pena.

A série especial podcasters regressa daqui a poucas semanas. Para quem não leu as entrevistas anteriores, ficam os links das conversas com Rute Correia (Interruptor), com Bernardo Afonso (Fumaça) e com a Rita Cabrita (Bruá). Se tiverem sugestões, digam-me coisas no Twitter ou por e-mail!


O que se anda a passar


Placard

Nos últimos meses, foram lançados (ou recuperados) alguns podcasts sobre saúde mental que podem gostar de ouvir:

  • Isto É Psicologia (Ordem dos Psicólogos), um podcast quinzenal onde Mésicles Helin Berenguel conversa com 2 especialistas “sobre emoções e comportamentos no quotidiano”

  • Fala Quem Pod (ARIA - Fórum Sócio Ocupacional de Oeiras), um podcast “para ajudar a combater o estigma associado à doença mental”

  • Mentes Inquietas (Região de Leiria), “uma conversa curta que pretende estender a mão a quem pressente ou já evidencia que não está tudo bem”

  • Naturalmente Ansioso, o regresso das conversas de Tiago Galvão sobre ansiedade e depressão

  • PSYCHOTERAPIA, de Joana Gama. “​Psycho porque receio não bater bem da cabeça e terapia porque é uma palavra que geralmente custa dinheiro e aqui não. Só tempo.”

  • Alguns podcasts que podem revisitar: Psicologia Para Todos (Universidade Autónoma), Mudar de Vida (Rádio Observador), Sem Medo do Medo (TSF); e a playlist do Quem Pode, Pod sobre saúde mental


Enquanto isso, no PÚBLICO...