Liberdade para o ministro pensar melhor

A única razão para a eternização da precariedade na ciência é a visão de um ministro e de um Governo que se habituaram a ter dos seus investigadores os melhores resultados com o mínimo investimento possível.

A pandemia alertou toda a sociedade para a importância da ciência e abriu a curiosidade sobre o trabalho dos investigadores do nosso país. Estes investigadores garantem que novos tratamentos são descobertos e fazem ciência que muitas vezes só anos mais tarde é possível provar a sua importância. A comunicação social recorreu, e bem, a cientistas para dar os factos mais credíveis durante a pandemia, mostrando assim a importância de contarmos com profissionais altamente formados e especializados no nosso país.

Ontem assistimos a uma reportagem da SIC sobre as condições laborais dos investigadores em Portugal. Assim se percebeu que a importância reconhecida à ciência durante a pandemia não foi suficiente para que o Governo alterasse as suas condições. Afinal, o que significa ser investigador em Portugal? No nosso país, praticamente nenhum investigador tem acesso à respetiva carreira. Concorre de bolsa em bolsa ou contrato em contrato para ir fazendo a sua investigação, sempre sem perspetiva de atingir estabilidade laboral.

Até há pouco tempo, o vínculo mais usual era a bolsa de investigação, sendo estas limitadas no tempo, sem possibilidade de subsídios de férias ou natal, ou de desemprego quando acabasse. A única contribuição para a segurança social é apenas um seguro social voluntário, significando que estes bolseiros estão completamente desprotegidos socialmente e que na reforma será como se tivessem ganho o salário mínimo toda a vida. Caso fiquem doentes durante a bolsa não têm direito a baixa, tendo simplesmente que suspender a bolsa enquanto não puderem voltar ao trabalho. Portugal diz-se um país desenvolvido mas, com estas condições laborais para os investigadores, as tão desejadas tecnologia e investigação de topo são conseguidas com condições de terceiro mundo.

Apesar de se ter diminuído o número de bolsas, passando-as a contrato nalguns casos, a existência destes contratos não acabou com a precariedade. Continuam a ser contratos a termo certo, de muito pouco tempo, sem perspetivas de contrato seguinte ou entrada na carreira. Como ficou demonstrado na reportagem, isto não afeta apenas os investigadores mais novos. Cientistas com mais de 50 anos continuam sem conseguir planear a sua vida a longo prazo, estando numa precariedade muitas vezes insustentável não fosse o apoio familiar. Trata-se, assim, de uma discriminação silenciosa, pois apenas os que têm mais apoio e recursos familiares conseguem prosseguir neste setor.

Os estudantes de doutoramento continuam com bolsas, a única forma possível de vínculo, de acordo com o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor. Diz o senhor ministro, em declarações à SIC, que os doutorandos não devem ter contrato de trabalho porque a bolsa é a única forma de garantir total liberdade de ação e pensamento. Usa também o argumento da idade destes investigadores para validar a precariedade mais extrema. A idade, a função ou a suposta liberdade de ação não podem fazer parte de qualquer argumento vindo de alguém que se queira levar a sério. A única razão para a eternização da precariedade na ciência é a visão de um ministro e de um Governo que se habituaram a ter dos seus investigadores os melhores resultados com o mínimo investimento possível.

Garantir um investimento sustentado e contínuo na ciência, com condições estáveis para os seus investigadores, é a única maneira de garantirmos uma resiliência para o futuro. A ciência tem sido um faroeste de direitos laborais e da dignidade mais básica. Nenhum governo tem tido a visão necessária para alterar a maneira como funciona a ciência em Portugal, porque é demasiado fácil apresentar resultados para inglês ver sem respeitar direito algum.

Depois da covid-19, todos desejamos voltar ao “normal”. Mas o normal neste caso é os investigadores passarem quase mais tempo à procura de oportunidades de trabalho ou financiamento do que a fazer efetivamente ciência. O normal é trabalhar três ou quatro meses de borla enquanto se espera que a próxima oportunidade chegue, porque os artigos e a produção não podem parar nunca. É também normal que estes investigadores trabalhem em Universidades ou Institutos Superiores Politécnicos, não tendo qualquer voz na gestão destas instituições – não podendo sequer eleger ou serem eleitos para os seus órgãos. Este regime paralelo no qual se transformou a Academia mina princípios basilares de uma sociedade democrática e que respeita o trabalho.

São vários os países que garantem contrato de trabalho a doutorando. Alguns desses exemplos são a Suíça, a Alemanha, a Dinamarca, a Bélgica ou mesmo a Holanda, onde, para além do contrato, existe progressão salarial ao longo dos anos do doutoramento. É a falta de democracia e de oportunidades que nos tira a liberdade de ação e pensamento, não o seu contrário. Será que o senhor ministro, que teve oportunidade de constituir uma carreira académica com contratos de trabalho e acesso a uma carreira, se viu privado da sua liberdade científica? Temo que não.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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