Auctoritas e Autoritarismo: notas soltas sobre um presente atribulado

O que se passou nesta época atribulada de Pandemia, a desinformação que serviu a políticos e demagogos irresponsáveis, a substituição do dever de Responsabilidade por Autoritarismo, são fruto de um Tempo de atribulação e insegurança que potenciam a predisposição autoritária.

"O país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos socialmente uma comunidade pacifica de revoltados.”
Miguel Torga

A semana foi marcada por episódios que são a expressão da decadência do exercício democrático e da ausência de Auctoritas, conceito que importa não confundir com Autoritarismo. Em artigo anterior procurei balizar o seu significado numa sociedade complexa como a nossa. A legitimidade de governar provém do voto popular expresso por eleições livres, justas e sérias; mas, na esfera política, o que confere Autorictas, mais que a visibilidade pública, ampliada pela presença mediática ou divulgada nas redes sociais, é a coerência do percurso, a lucidez, o respeito inabalável pelos valores fundamentais do Humanismo ocidental: Liberdade, Tolerância e Solidariedade. Consubstancia a figura do public intelectual, isto é, alguém que pela sua independência, coerência, conhecimento, exemplo e ética é ouvido e constitui uma referência. E uma barreira à emergência do Autoritarismo.

Para a minha geração, a do baby boom pós-1945, que viveu, conheceu e experimentou diferentes modelos políticos e sociais, desde a Autoridade proveniente do partido único ou dominante, a lideranças carismáticas e totalitárias, a força dominante que alimentou a Esperança foi, em todas as latitudes, o apelo democrático que o ano de 1989, com a queda do muro de Berlim, tão claramente simbolizou. Por isso, lê-se com enorme preocupação que essa aspiração democrática estará em retracção, a aceitação de sistemas políticos que apelam ao exercício autoritário do Poder talvez em nome da ordem, da pacificação social e da eficácia administrativa. A Tentação Totalitária [1] que, segundo Jean François Revel, irrompia como expressão d’un désir d’être gouvernée de façon totalitaire que, na época, parecia dominado pela ilusão de um comunismo não estalinista, sem gulags.

A publicação na imprensa deste fim-de-semana de um estudo científico académico e com dimensão europeia [2] confirma essa tendência progressiva para a aceitação de modelos autocráticos substituindo as regras e os procedimentos das democracias representativas. Aviso à navegação? Apelo a uma reflexão sobre o nosso quotidiano e os novos desafios que a Pandemia suscitou? Ou a sedução do Oriente com a sua proclamada eficiência económica e administrativa? Valerá a pena uma curta reflexão.

Em livro recentemente publicado, a historiadora e politóloga Anne Applebaum [3] faz uma análise lúcida e objectiva sobre os desafios que a democracia representativa enfrenta e o sentimento colectivo que definiu como apelo sedutor do autoritarismo. Obra interessante e que, invocando os founding fathers da Constituição americana e a sua preocupação em criar um modelo político e de governação assente na razão, na lógica e no compromisso, o qual diminuísse o risco potencial de uma deriva irracional.

Como e porque surge essa tentação autoritária e anti-democrática? Talvez a explicação esteja nos traços de personalidade autoritária que, sendo inerentes ao ser humano, se tornariam preponderantes em situações de desenraizamento de valores sociais e familiares, porventura ampliados por repressão comportamental na infância. Karen Stenner, que a autora cita no livro, propõe a substituição do termo personalidade – cuja conotação seria demasiado marcante e rígida – por predisposição, a qual oscilaria entre duas tendências inconscientes: a autoritária, favorável à homogeneidade e à ordem, e o seu contraponto, a predisposição libertária, mais aberta à aceitação de diferenças e diversidade [4]. Uma explicação possível para a intolerância e incompreensão que seguidores dessa via autoritária evidenciam perante a ambiguidade e complexidade de situações reais, como a diversidade sócio-cultural, o receio das migrações, as causas e tratamento da actual Pandemia, adoptando as explicações simplistas das redes sociais e também o discurso demagógico, habitualmente autoritário, linear, single-minded.  São estes traços que poderão ser ampliados em época de crise como a actual, de alguma tensão das instituições e de desafio a um equilíbrio social e económico que, até então, era tido como consensual.

É uma visão interessante para além dos referenciais tradicionais de esquerda e direita, que ajuda a compreender o eco que o apelo autoritário parece suscitar numa parte significativa da população – em Portugal, cerca de 63%, segundo o estudo mencionado.

Essa perspectiva fundamentar-se-á na potencial interacção de três dimensões i) a biologia comportamental individual com o seu componente genético, que é a expressão da ordem e determinismo sem a qual a vida não é possível; ii) a Educação indispensável à formação do espírito, ao desenvolvimento da inteligência e do raciocínio crítico e à compreensão dos fundamentos e dos mecanismos que asseguram a vida em Sociedade; e iii) a partilha do espírito de Comunidade e da sua inserção global. Dessa interacção poderia resultar um estado de espírito refractário à aceitação da complexidade, tornando a pessoa sensível ao discurso autoritário, como teorizou Hannah Arendt [5] a propósito das origens do totalitarismo e da banalidade do Mal no nazismo, como à perseguição e eliminação da dissidência intelectual e política que ainda hoje marca regimes políticos que aspiram à dominância e não enjeitam proselitismo. Essa predisposição autoritária não seria loucura momentânea, mas, pelo contrário, um fenómeno persistente nas sociedades humanas e um desafio às actuais democracias liberais [6] consequência da incapacidade do exercício intelectual de pensar, do temor ao ruído da discussão e do reconhecimento da diversidade, de opiniões e também étnica, substituídos pelo conforto de uma narrativa linear aparentemente lógica, coerente e simples. Um problema de Educação e uma realidade que não deverá ser escamoteada.

Mas, para além desta dimensão, existem duas outras realidades que potenciam este apelo autoritário. A primeira, mais antiga, foi reconhecida por Julien Benda em La Trahison des Clercs, escrito em 1927 [7]. É representada pelos intelectuais, estudiosos, académicos e outros, que traíram o rigor da procura e defesa da Verdade e a sua independência ao serviço da propaganda de uma ideologia unificadora e intelectualmente atractiva. Persiste nos dias de hoje, com outras nuances ampliada nos blogues acríticos, nos consumidores obedientes das redes sociais sem critério e minam a isenção, o rigor científico e honestidade intelectual indispensáveis à vida democrática. A segunda realidade é o descrédito de lideranças políticas, potenciado pela menor exigência democrática, pela ausência de debate sério e informado, substituídos por um estado difuso de indignação pública que tem marcado, também, o tempo político português. Daí ter-me ocorrido a citação de Miguel Torga, de outro tempo e outras circunstâncias, nas quais poderia fazer sentido o apelo romântico à agressão, mas que hoje deve ser substituída pelo exercício de crítica, exigência e responsabilidade democráticas que nos deve mobilizar a todos.

O que se passou nesta época atribulada de Pandemia, a desinformação que serviu a políticos e demagogos irresponsáveis, a substituição do dever de Responsabilidade por Autoritarismo, são fruto de um Tempo de atribulação e insegurança que potenciam a predisposição autoritária.

Permita-me, caro leitor, que mencione três exemplos paradigmáticos da nossa realidade recente.

O primeiro, na Educação: a imprensa publicou o ranking anual das instituições escolares públicas e privadas, no qual se evidencia a contínua degradação dos resultados obtidos pelo sector público. A minha geração foi o produto, na sua esmagadora maioria, do sector público de Educação, que era um marco de qualidade e um referencial. Afirmá-lo, não é ignorar as suas limitações, a iniquidade no acesso, o seu pendor ideológico e doutrinário, nem é exercício de branqueamento de um Passado com o qual a esmagadora maioria nunca concordou. É constatar uma realidade. Décadas depois e de uma Política inconsequente em defesa da Escola Pública – houve raras excepções bem conhecidas e que deixaram obra relevante e são referência! Política que privilegiou cedência às reivindicações sindicais em detrimento da defesa da qualidade do ensino, da dignidade da carreira docente e da Boa Educação dos jovens, que pactuou com a deterioração estrutural das instalações de ensino e, sobretudo, continuou prisioneira de um modelo centralizador e autocrático de gestão incapaz de incorporar e diferenciar as necessidades institucionais que a democratização do acesso e a diversidade dos estudantes suscitam. A deterioração da qualidade do ensino era inevitável.  Esperava-se, e exigia-se, um debate público sobre as causas e como agir para resolver esta realidade. Incapazes dum acto de reflexão e de avaliação crítica dos resultados da sua Política de Educação, os responsáveis refugiaram-se na discussão estéril sobre o significado dos rankings, o valor intangível da educação pública e na comodidade do silêncio político. Anunciaram um programa utópico sem coerência e que, receio bem, venha alargar o vasto leque das promessas não cumpridas, dos equipamentos ao modelo de organização. Mas do lado da Oposição, sem política alternativa, o silêncio foi verdadeiramente ensurdecedor e desmoralizante. Não se vislumbra uma visão nova, uma política reformista que potencie uma Educação moderna, sólida, fomentadora de exigência e conhecimento, de cultura e de cidadania informada fortalecendo o espírito de comunidade nacional responsável e integrada no mundo.

O segundo, sobre o Respeito por Direitos Fundamentais como o dever de assegurar a segurança dos que, procurando asilo no nosso País, exercem o direito constitucional de se manifestar contra injustiças nos seus territórios de origem. O episódio recentemente divulgado que envolveu desde a Câmara Municipal de Lisboa aos ministérios da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros, todos tinham sido avisados e há meses, é profundamente lamentável e desolador. Para além de traduzir incúria, sobranceria e desrespeito pela Verdade, evidencia uma realidade dolorosa contida nesta interrogação: é assim que funciona o governo e a administração pública no nosso País? É esta a competência dos seus responsáveis? A candura da resposta da embaixada russa é para vergonha nossa! Que falta faz Auctoritas que impusesse respeito e seriedade! Tranquilizam-nos, actualizar-se-á a legislação; um golpe de mágica que só serve para diluir a responsabilidade pública e controlar a indignação!

Finalmente, a confusão entre Governo e Estado, outra marca do Tempo. Nas democracias representativas e de tradição liberal nas quais nos integramos após 25/11/1975, que marcou a derrota da deriva autocrática, prevalece um princípio fundamental: a alternância do Poder. Expressão do compromisso democrático que procura impedir que se ocupe a estrutura dirigente do Estado pela nomenclatura partidária dominante e assegura a independência e isenção da Administração Pública. E é imunidade a tentações totalitárias por via eleitoral. Infelizmente, não foi só no Presente que ocorreram desvios a esta regra fundamental, mas é mais um péssimo exemplo que persiste e traduz ensimesmamento das lideranças políticas actuais.

Tudo isto potencia e favorece a predisposição autoritária e mina a credibilidade da Política. Ilustra, também, o receio da avaliação isenta e implacável da História através de uma narrativa que se pretende controlada e coincidente com os desígnios do poder actual.

Por isso se impõe o incómodo do dever de cidadania empenhada do qual não nos devemos eximir.

A Democracia é uma construção permanente, não uma realidade virtual ou uma dádiva de Passado recente para celebrar anualmente. A sua construção é, também, a nossa Responsabilidade individual, o privilégio da Liberdade e pressupõe o Dever de Exigência na vida pública.

[1] Revel, Jean François: La Tentation Totalitaire, ed. R Laffont, Paris 1976
[2] European Values Study 2017-2020, in Expresso, 11/6/2021
[3] Anne Applebaum: O Crepúsculo das Democracias, ed. Bertrand, Lisboa 2020
[4] Stenner, K.: The Authoritarian Dynamic. Cambridge University Press, 2005
[5] Arendt, Hannah: The Origins of Totalitarism, 1951
[6] Stenner, K. and Haidt, J. (2018). Authoritarianism is not a momentary madness, but an eternal dynamic within liberal democracies. In C.R. Sunstein. (Ed.), Can It Happen Here? (pp. 209-217). New York City, NY: Dey Street Books
[7] Benda, Julien: La Trahison des Clercs, 1927

Sugerir correcção
Ler 4 comentários