Apelo ao boicote foi o grande vencedor das legislativas na Argélia

Com a participação eleitoral mais fraca de sempre, o regime argelino insiste em reafirmar a sua legitimidade. Mas o divórcio com a população, exposto no movimento de revolta de 2019, continua.

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As opções de voto eram muitas, mas a maioria escolheu não votar RAMZI BOUDINA/Reuters

Para a narrativa oficial, as eleições desta semana abriram caminho à “nova Argélia” anunciada pelo Presidente, Abdelmadjid Tebboune. A prova disso, escreve o diário oficialista El Moudjahid é a eleição de 78 independentes para o Parlamento, suposto sinónimo de “ruptura” e de “um passado definitivamente lançado ao esquecimento”. Na verdade, o dado mais importante das primeiras legislativas desde que o movimento de protesto Hirak obrigou os militares a deixar cair Abdelaziz Bouteflika, em 2019, é a participação de 23,03%, a mais baixa de sempre na história eleitoral da Argélia independente.

O partido mais votado foi, sem qualquer surpresa, a Frente de Libertação Nacional (FLN), antigo partido único, que conquistou 105 lugares em 407, seguida dos independentes, amplamente apoiados pelas autoridades, que até financiaram com bolsas todos os candidatados com menos de 40 anos que se apresentaram sem apoio de partidos. Os dois outros partidos que reuniram um número importante de deputados são o Movimento da Sociedade para a Paz (MSP, islamista), com 64 eleitos, e a União Nacional Democrática (RND), com 57, ambos antigos membros da Aliança que manteve Bouteflika no poder entre 1999 e 2019.

Na prática, a maioria dos eleitos deve apoiar o programa de Tebboune, considerado o escolhido pelos militares para suceder a Bouteflika e eleito nas presidenciais de Dezembro de 2019. E isso significa que se mantém o divórcio entre os dirigentes do país e grande parte da população, que escolheu abster-se, seguindo o apelo ao boicote dos líderes do Hirak.

Apesar de ser alvo de uma repressão crescente, o movimento impõe-se como contra-poder consolidado. Às autoridades resta continuarem a alimentar a ideia de que são representantes da vontade de mudança que encheu as ruas da Argélia e não do sistema que permitiu a saída de cena de Bouteflika precisamente para sobreviver. “A dinâmica de mudança pacífica que foi lançada [com os protestos] está a ser fortalecida”, afirmou, nesse sentido, o chefe da Comissão Eleitoral, Mohamed Chorfi, depois de anunciados os resultados das eleições de sábado.

Para Rachid Ouaïssa, professor de Ciências Políticas do Centro de Estudos do Médio Oriente da Universidade Phillips, de Marburg, na Alemanha, os argelinos que foram às urnas limitaram-se a “reconduzir partidos que estão desacreditados há 20 anos”, cita o diário francês Le Monde.

Depois de uma longa interrupção provocada pela pandemia, o Hirak voltou em Fevereiro a realizar as suas manifestações de sexta-feira. No final de Abril, as forças de segurança começaram a impedir as marchas dos estudantes e vários dirigentes do movimento foram detidos temporariamente, assim como centenas de activistas que desafiaram as novas restrições aos ajuntamentos públicos.

Na última quinta-feira, sete líderes do protesto, incluindo Karim Tabbou, um dos rostos mais conhecidos da revolta pacífica que abalou o regime e um dos que mais repetiu os apelos ao boicote, foram detidos. Um dia depois, a polícia ocupou o centro da capital, bloqueando assim qualquer tentativa de realizar protestos anti-Governo. Mais de 200 pessoas estão actualmente na prisão por acusações ligadas aos protestos.

Tabbou, que dirige o partido não reconhecido União Democrática e Social, assegurara mais um mês antes das eleições que o seu é agora “o maior partido político”. Com quase 77% de abstenção, será certamente um dos maiores.

A dimensão do boicote impressiona principalmente quando se tem em conta as capacidades do regime. “O boicote reduziu ‘a festa’ eleitoral a uma quermesse de bairro, apesar da propaganda estalinista e dos meios colossais utilizados pelo Estado”, escreve o jornalista Nouri Nesrouche no jornal argelino independente El Watan. Para Nesrouche, o “potencial” de mobilização do Hirak, comprovado pela eficácia dos seus apelos ao boicote, deverá agora “transforma-se em uma ou mais forças políticas estruturadas”.

Com excepção do partido de Tabbou, não registado, as figuras mais importantes do movimento têm evitado organizar-se para evitar uma exposição maior à repressão – uma opção que começa a deixar de compensar.

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