A fronteira

Mariana nasceu de uns pais que se perderam num dia incerto, em consumos desvairados que engolem vidas sem perguntas.

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"Amélia era a protagonista de «O lado errado da noite»" Mag Rodrigues

Tinha começado a minha adolescência quando Jorge Palma editou o disco onde ouvi demasiadas vezes a mesma canção: “O lado errado da noite”. Às vezes somos demasiado novos para perceber o sentido das palavras mas pressentimos que há ali vida contada que foi triste, que é triste, que nunca será feliz.

Mais tarde, já de braço dado com a consciência, percebi muito bem a sorte de se nascer de um lado ou de outro. De ser da noite errada ou do dia certo. De se fazer luz ou sombra na nossa vida. Não pensamos vezes suficientes nisso. Não valorizamos, como devíamos, a sorte.

Amélia era a protagonista de “O lado errado da noite”. Basta ouvir a canção para ficarmos com o desenho de uma vida escangalhada. Uma vida que não teve direito a um caderno de folhas limpas onde se inicia a nossa história. As folhas foram arrancadas antes de serem escritas.

A protagonista de hoje chama-se Mariana.

Mariana nasceu de uns pais que se perderam num dia incerto, em consumos desvairados que engolem vidas sem perguntas. Uns vão nessa torrente impiedosa. Outros sabem parar.

Mariana, muito pequenina foi entregue a uma prima mais velha. Uma prima em segundo grau, mulher sozinha, recta, austera. Também ela (sem saber) descobriu o amor com aquele novelinho rechonchudo que vinha de um lar desfeito. Mariana veio com a irmã mais velha. A irmã já trazia demasiadas memórias do que tinha visto. Um dia também bateu com a porta em casa da prima.

Mariana, lembro-me, demonstrava mais afecto do que qualquer miúdo na escola. Era desinibida, gostava de dançar. Agradecia a atenção que lhe davam. Vi algumas vezes a mãe, descontrolada, apresentar-se na escola e ela, Mariana, a tentar que a mãe reparasse nela, mas a mãe que um dia ficou presa ao lado errado da vida, não via Mariana. Mostrava-se inadequada num lugar que não sabia se ocupava, se merecia ou sequer se podia ocupar. Falava alto e ria filmando a filha que não sei se lhe chama mãe. Era uma algazarra que nunca se diluía mesmo entre os gritos dos miúdos em festa.

Todos de alguma maneira sempre tememos pelo que podia acontecer a Mariana.

Sem detalhes, um dia chegou a notícia de que a guardiã de Mariana partira a perna e fora hospitalizada. Muito tempo. Mariana teve de voltar para casa da mãe. Faltava às aulas marcando presença na angústia de quem a seguia. Estava novamente presa ao lado errado da vida.

Quando tempos mais tarde vi a sua guardiã na rua, sorri. Percebi que tinha recuperado, e, ao mesmo tempo, estava a devolver a vida a Mariana.

A miúda, agora adolescente, cresceu muito. Aprendeu o amor com a prima que podia ser avó, mas que para ela é a verdadeira mãe que lhe ensinou o verdadeiro amor.

Há dias, Mariana deu conta ao seu grupo de amigos, do AVC da sua protectora, e simultaneamente do amor que lhe tinha jurado para sempre e como por causa dela era hoje a pessoa que nunca sonhou ser. Mariana fez uma declaração de amor à prima no seu grupo do liceu. Uns leram e não perceberam porque ainda não sabem desta fronteira fácil de podermos ficar do lado errado de repente.

Mariana explicava aos amigos que tinha de voltar para casa da mãe e que por isso ia ter de mudar de escola e ia perder o chão que já tinha. Que precisava de abraçar a prima e dizer o quanto a amava.

O texto foi-me mostrado e eu quis abraçar a Mariana.

Hoje ela já não foi à escola. E eu fiquei numa angústia pensando se a força que aquela velha mulher lhe deu será suficiente para a manter do lado certo. Se não atiramos a toalha ao chão quando já são muitas as fintas que a vida nos prega.

Acredito que voltarei a ver a guardiã da Mariana nestas ruas e que logo a seguir a ela, surja a miúda que nunca precisou de ser filha de sangue, para ser a sua razão de viver.

É forte o amor quando sabemos que somos uns dos outros. Esse amor costuma manter-nos no lado mais luminoso da vida.

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