A arte de pagar a conta

Pagar a conta é um atropelo ao debate. Os argumentos são muitos, ninguém os ouve. Quando estamos com alguém, seja um primeiro encontro, uma reunião apressada de trabalho, um desabafo improvisado ou uma combinação de última hora, queremos ser nós a pagar a conta.

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Stefan Vladimirov/Unsplash

O instante da chegada de um pequeno pedaço de papel à mesa após barriga satisfeita e conversa fiada é motivo de reflexão. O gesto que o antecede é universal. A junção do polegar ao indicador, de mão ora discretamente levantada, ora desengonçadamente visível, é de fácil compreensão. Aqui e na Micronésia. 

Pagar a conta é um atropelo ao debate. Os argumentos são muitos, ninguém os ouve. Quando estamos com alguém, seja um primeiro encontro, uma reunião apressada de trabalho, um desabafo improvisado ou uma combinaç​ão de última hora, queremos ser nós a pagar a conta. Depois o outro lado apresenta os seus argumentos e pede encarecidamente que se divida ou pede para assumir a totalidade do almoço. E isto é num dia bom. Porque a maior parte das vezes é bastante mais complexo, merecendo análise. 

Comecemos pelos mais atribulados: jantares de grupo, papéis compridos que chegam à mesa mal dobrados em cima de um pires de metal. Muita gente, muito barulho, muita discussão: “Porque eu não vou pagar o whiskey que não bebi"; “Então mas eu chego apenas para a sobremesa e pago como se tivesse comigo o borrego?”; “Divide-se tudo"; “Não se divide nada"; “O Augusto só pediu café"; “A Cristina já não se lembra do que pediu” e há sempre alguém que se lixa. Seria necessária uma comissão parlamentar, mas o tempo, esse, é escasso. Há que sair porta fora que isto hoje não dura muito. 

De outro nível temos os mais comedidos, os mais suaves. Almoços e jantares de alguma cerimónia que, por boa educação, altruísmo ou outra coisa que agora não me ocorre, geram um debate mais formal. Se num jantar com muita gente se ouvem coisas como “oh palhaço, mas tu viste-me a sugar as guarnições todas, não?” e “cobras-me o arroz de choco com tinta quando só dei uma trinca no rissol do couvert; bom amigo de merda que me saíste”, num jantar mais discreto, a própria argumentaç​ão é mais suave. “Nem pensar, este pago eu, fui eu que convidei"; “Era o que faltava, deixe lá isso”, “Ora essa, dividimos numa próxima”. Aquela imagem estereotipada do prato da conta que vai sendo puxado para cada lado é uma realidade que nos persegue e assim continuará. 

O acto de pagar a conta transmite muitas impressões. Sobra pouco para o resto. Vem de tudo à cabeça. Desde alívio a inquietação. “Ainda bem que se chegou à frente porque eu nem carteira trouxe”, “eu pagava na boa mas se avançou, quem sou eu....”. Há de tudo. Mas pagamos para agradar ou retribuir. Ou talvez só para agradar. ​De outra forma, somos seres complexados. Nunca queremos ficar mal vistos. É um momento tenso, esse quando a conta chega. Há quem goste de ir ao balcão como quem vai à casa-de-banho e chega à mesa já de cartão de novo inserido na carteira, há quem goste de perguntar honestamente: “então e agora como é que fazemos isto?” e há quem seja constrangedora e exageradamente sincero. 
“Deixa, este eu pago.”
“Certo.”

A tendência para a discussão é grande, mas a discussão nunca dura muito. É intensa e rápida. Às vezes não há margem de manobra. Há nervosismo e incerteza, mas esse será sempre o sinal de que estamos vivos e de barriga cheia. 

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