O futuro da Universidade

A Universidade portuguesa, como o próprio país, é uma instituição envelhecida, em geral avessa ao mérito e cuja missão é tudo menos clara. A pandemia veio tornar esta realidade ainda mais visível.

Um dos grandes debates dos dias que correm é sobre o papel da ciência em sociedade e o futuro da Universidade. Foi uma das faces mais visíveis da pandemia. Da corrida por uma vacina às aulas por Zoom, quem faz ciência e a ensina tornou-se subitamente o alvo de todas as atenções. Em pouco mais de um ano, aquilo que tomávamos por certo desmoronou-se. O modelo tradicional do ensino presencial numa sala de aula foi subitamente colocado em questão. Aulas remotas ao vivo, em que os professores respondem a perguntas dos alunos, estão, cada vez mais, a substituir as aulas tradicionais de exposição da matéria.

Estas mudanças são, para todos os efeitos, um sinal do futuro da Universidade. Quem ganha e quem perde com esta mudança, e tantas outras provocadas pela pandemia da covid-19, é provavelmente a principal questão nos dias que correm.

Que as desigualdades aumentaram é ponto assente. Quer a desigualdade entre países, quer a desigualdade no nosso país, terão aumentado de forma expressiva nos últimos anos. Enquanto alguns países aproveitaram esta pandemia para repensar os seus sistemas de ensino, tentando transformar uma crise numa oportunidade, outros, Portugal incluído, têm tido muito mais dificuldade em fazê-lo. Apesar de ainda não termos dados fiáveis, não me surpreenderia se daqui por alguns anos fossemos confrontados com um aumento significativo entre nós das desigualdades no acesso e desempenho escolar desde 2020. O facto de que a forma como se ensina está a ser alvo de uma rápida e profunda transformação vai ter um impacto significativo sobre estas desigualdades. Se não quisermos ficar (ainda mais) para trás como país, e deixar alguns (ainda mais) para trás entre nós, há que olhar com atenção para o que esta mudança acarreta.

A Universidade portuguesa é, como qualquer sistema de ensino superior em qualquer parte do mundo, o retrato do país onde se insere. As qualidades e defeitos do país encontram-se, quase sem exceção, nas nossas universidades. A falta de planeamento estratégico a médio e longo prazo, a incapacidade de atrair talento e produzir inovação, a reprodução crónica das desigualdades do meio onde se insere, são traços há muito diagnosticados. Com algumas honrosas exceções, são problemas nunca enfrentados. A Universidade portuguesa, como o próprio país, é uma instituição envelhecida, em geral avessa ao mérito e cuja missão é tudo menos clara.

A pandemia veio tornar esta realidade ainda mais visível.

A quem serve, afinal, a Universidade? A quem a frequenta, os alunos? A quem lá trabalha, funcionários e professores? Ao país, nomeadamente à economia? A resposta típica entre nós é: “a todos”. É também a melhor garantia de que nada muda. Não mudar nada interessa a alguns, usualmente a quem de momento beneficia do sistema e das suas ineficiências. Mas a pandemia veio perturbar esta lógica de reprodução das hierarquias e desigualdades. E veio obrigar-nos a esclarecer, afinal, para que serve a Universidade. 

Fala-se cada vez mais em Portugal de uma “Universidade de investigação” como forma de pensar o futuro pós-pandemia. É um termo importado dos Estados Unidos, onde o sistema se divide entre uma base sobretudo orientada para o ensino e formação, e um topo formado por universidades em que o ensino se alimenta da investigação. Em ambos os casos, os alunos são o centro e razão de ser da instituição. É por isso que, em sítios como Harvard, Chicago ou Yale, quem ensina os alunos de primeiro ano são os professores mais experientes. Ensinar a alunos de primeiro ano é o melhor teste para quem faz ciência: o melhor teste a uma ideia complexa é sermos capazes de a explicar de forma clara e percetível. É esta relação umbilical entre ensino e investigação que está por detrás da expressão “universidade de investigação”. É isto que está por detrás do novo modelo de ensino à distância. Um modelo com aulas pré-gravadas ou ao vivo. Aulas ao vivo em que alunos e professores interagem de forma muito mais intensa do que o modelo tradicional. Trata-se, convém não esquecer, de uma relação muito mais exigente para ambas as partes. Dos alunos espera-se que tenham aprendido o suficiente para poderem participar: só tem dúvidas fundadas quem leu a matéria. Dos professores exige-se um domínio da matéria que não se resuma à mera reprodução mecânica das ideias de terceiros: responder a perguntas difíceis e inteligentes é o melhor teste que um professor pode ter às suas capacidades e limites.

O futuro pós-pandemia vai ser longo e doloroso. A recuperação das fraturas económicas e sociais vai demorar anos. A Universidade portuguesa é parte deste processo de recuperação. O desafio é claro: aproveitar a disrupção causada pela pandemia para repensar as nossas universidades. Espelho do país, é provável que esta seja uma oportunidade perdida. Ou, como quase sempre, que seja uma oportunidade perdida por algumas e aproveitada por outras. Na parte dedicada à transição digital, o famoso PRR toca neste desafio. Infelizmente, o que lá se diz pouco mais faz do que listar a compra de equipamento e repetir clichés.

Sejamos claros. Fazer ciência, como esta pandemia tornou óbvio, é absolutamente crucial para a vida em sociedade. Sem os esforços dos cientistas, não teríamos as vacinas que estão a ajudar a combater a pandemia. A transmissão deste conhecimento é a principal missão da Universidade. Os destinatários são os alunos. Uma Universidade é tão boa como os alunos que forma. Porque, tão importante quanto produzir conhecimento, é saber transmiti-lo. Tão importante quanto produzir uma vacina, é ensinar como se faz uma vacina – num anfiteatro cheio de alunos, ou perante um ecrã de computador.

Até hoje, a Universidade portuguesa tem tido dificuldade em estar à altura deste duplo desafio. Durante muito tempo, as razões do nosso atraso eram a ditadura. Com quase meio século de democracia, temos de começar a encontrar outras razões. A pandemia veio tornar isto ainda mais claro. Há uma revolução em curso e, se não quisermos ficar (ainda mais) para trás, há que começar a construir o futuro já hoje.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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