Ninguém é velho, mas…

Nesta época em que tanto falamos (e nos queixamos) das discriminações, agressões e bullying, pouca ou nenhuma relevância é atribuída a essa violência velada, de que se é vítima em decorrência do avanço da idade, e de que todos viremos, um dia, a ser alvo.

Em conversa com uma amiga, profissional experiente e profundamente conhecedora da sua área de trabalho, escutei os seus desabafos acerca dos preconceitos, e consequentes agressões, ligados à idade e ao rótulo de imprestabilidade que nos vão aplicando, na exacta proporção da passagem dos anos.

Curiosamente, nesta época em que tanto falamos (e nos queixamos) das discriminações, agressões e bullying, pouca ou nenhuma relevância é atribuída a essa violência velada, de que se é vítima em decorrência do avanço da idade, e de que todos viremos, um dia, a ser alvo, sobretudo se nos mantivermos, enquanto colectivo, nesta atitude generalizada de silêncio anuente e cúmplice.

E não me refiro à negligência, ao abandono e ao desprezo a que são votados os mais velhos, tanto no plano micro das interacções familiares e comunitárias, quanto no plano macro das políticas públicas, na sua comprovada indiferença ou incapacidade de criar respostas e estruturas de apoio adequadas.

Nem me refiro à pobreza e ao isolamento em que sobrevive uma considerável percentagem da população de idades mais elevadas, e que nos deveriam envergonhar a todos, enquanto sociedade democrática e socialmente justa que afirmamos ser. Sê-lo-emos, talvez, mas na fachada. Infelizmente, este grupo de população, pela fraqueza das suas vozes ou pela natureza comezinha das suas necessidades, não conseguiu ultrapassar as fronteiras esquecidas de um anexo de quintal.

Refiro-me, sim, a essa outra discriminação, que se começa a desenhar quando se dobram os sessenta (ou antes, até, nalgumas áreas e sectores profissionais). Uma discriminação socialmente validada e normalizada, que se manifesta em expressões pretensamente inocentes como: “mas olha que os tempos mudaram!”; ou “sim, mas agora é tudo muito diferente!”; ou “pois, mas hoje as pessoas querem outras coisas!”; ou “está certo, mas actualmente o ritmo é outro!”; ou, ainda, “isso era dantes, mas agora já não se faz assim!”.

Destes exemplos, e dos tantos outros que poderiam ser enumerados, destaca-se esse “mas” sempre presente. Um “mas” que discrimina, segrega e remete o destinatário da mensagem para uma implícita condição de inutilidade social.

Uma simples sílaba que destrói todo um cumulativo de saberes, de experiências e de vivências passadas, condenando-os à descartabilidade das coisas sem valor. E que destrói, também, todo um outro cumulativo de aspirações, objectivos e sonhos de futuro, remetendo-os para a categoria dos devaneios sem propósito e, como tal, desmerecedores de atenção ou cuidado.

Uma sílaba mortífera, num tempo em que é expectável que todos possamos viver mais anos. Mortífera na sua capacidade de aniquilar vontades, auto-estima e auto-confiança. Mortífera no desrespeito, pelos outros, ou seja, pelos que são mais velhos, e também por nós próprios, que envelhecemos a cada dia.

Porque neste tempo de aparências, em que se restauram os corpos, na ilusão de enganar os anos, e em que querem, à viva força, convencer-nos que os sessenta são os novos cinquenta, e estes os novos quarenta, como se isso fosse um elogio, quando, na verdade, não passa de mais um dos certificados de rejeição do envelhecimento, é essa conjunção, esse “mas”, que prevalece, ressoando, como um eco, no mais fundo de quem o ouve.

O “mas” do que se julgava saber e, aparentemente, já não se sabe (por causa da idade). O “mas” do que se julgava poder e, aparentemente, já não se pode (por causa da idade). O “mas” do que se julgava ser e, aparentemente, já não se é (por causa da idade).

Uma conjunção que se coloca, estrategicamente, entre o aspecto jovial, que nos asseveram “ainda” termos, e o encolher de ombros (mais ou menos discreto) com que reagem às nossas ideias.

E, no entanto, por entre as tantas queixas e reclamações, acerca das mais variadas formas de rebaixamento e humilhação (públicas e privadas), que por aí proliferam, alimentando os mais bizantinos debates, para gáudio e entretenimento público, este “mas”, discriminatório e demolidor, persiste na indiferença, qual elefante no meio da sala, contornado, em silêncio, pela vergonha de uns (conscientes da passagem do seu tempo), e pela sobranceria de outros (convictos de que serão jovens para sempre).

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