Bolha, auctoritas e governação… puff!

Pode a sociedade civil permitir-se ao luxo de abdicação e indiferença e deixar silenciar a sua voz? Talvez esta indiferença seja a razão para a pobreza intelectual e a falta de exigência no debate político, no governo e na oposição. Isso é que corrói a Democracia e esse caminho sabe-se aonde conduz.

Há duas semanas escrevi que calamidade poderia marcar esta nova etapa do combate contra o covid-19, como expressão da nossa dificuldade em avaliar, planear e agir com consequência. Factos ocorridos desde então puderam confirmar a afirmação e suscitaram perplexidade. Recapitulemos, pois.

A ligação política/futebol continuou na ribalta. Desde o embaraço potencial do chefe do Governo como membro de Comissão de Honra em eleição clubista – depois da audição na Assembleia da República, saudemos a indignação público-mediática que travou a iniciativa – à limitação de actuação jornalística após derrota de um candidato ao título, inteligentemente convertida em amável solicitação própria da cortesia local, aos casos de persistentes comportamentos nada desportivos de responsáveis e atletas durante e após os jogos, tudo isso foi ocupando o espaço público. O acessório em detrimento do essencial, por isso facilmente branqueado pelo tempo, a fluidez da memória e por bem conduzida barragem informativa. Nada de novo, se não fosse a Pandemia com os seus constrangimentos e a dificuldade de o cidadão comum perceber as excepções a regras sanitárias em vigor, mais a proverbial deficiência na comunicação pública.

Nesta coisa do futebol devo, caro leitor, uma declaração de interesses: leão assumido, sofredor conformado mas sempre com esperança, prometo ser fiel a isenção e distanciamento. Sejamos claros: independentemente do impacto epidemiológico, as celebrações da vitória no campeonato foram a expressão de um tremendo erro político e um mau exemplo. Tudo o que aconteceu era previsível e sendo a circunstância especial, até pela sua raridade, ter-se-ia imposto uma actuação preventiva e simultaneamente inovadora. Alguém acreditará na explicação da má comunicação entre autoridades para explicar complacência do Poder, autárquico ou do governo central? Se foi isso, então a situação é bem mais grave do que o cidadão poderá conceber. A hipótese mais provável foi a incapacidade de resposta das autoridades a novos desafios, de assumir decisões impopulares potencialmente desfavoráveis em ano eleitoral. Em vez de complacência com ajuntamento junto ao estádio potenciado pela transmissão televisiva do jogo e as tradicionais bancas de comes e bebes, não teria sido mais inteligente ter organizado admissão planeada e limitada no estádio de Alvalade com testes rápidos e distanciamento nas bancadas? Houve tempo para planear isso e a hipótese de o Sporting não pontuar era muito remota… O que se fez na final da Champions League, e que tão bem resultou no estádio, só vem confirmar que poderia ter sido uma solução. E que reforçava a Autoridade para exigir contenção e adiar cortejos e ajuntamentos.

Mutatis mutandis foi a história da dita bolha para confinar os adeptos ingleses! Quem se pretendia enganar? Era preciso isso para justificar uma decisão não isenta de críticas, mas possível e até compreensível? Não correu mal, como alguém responsável afirmou, e de facto poderia ter sido muito pior, recordando comportamentos anteriores, noutras cidades e noutros tempos, dos adeptos ingleses então designados por hooligans. Esperemos que todos estivessem vacinados – no Reino Unido o processo de vacinação tem sido um êxito – e que não sejam portadores de outras variantes agora denominadas pelas letras do alfabeto grego – o politicamente correcto também chegou à OMS! A bolha fez puff… parafraseando um prezado Amigo, mesmo antes que alguém a tivesse soprado!

Mas presto homenagem à final da Champions League e às suas lições. Primeiro, confirmou a capacidade da organização desportiva, que foi impecável, e que poderia ter sido aproveitada para acontecimentos nacionais, como bem acentuou o Presidente do FC Porto. Depois, foi uma lição de bom futebol, leal, competitivo, sem violência, com desportivismo. Ninguém, dos suplentes às equipas técnicas, se levantou dos lugares clamando e protestando contra a equipa de arbitragem e, no fim, os treinadores cumprimentaram-se com respeito, civilidade e camaradagem. Que bela lição para os nossos dirigentes, técnicos e jogadores! Só por isso, valeu a pena, não a esqueçam, por favor!

Governação é também um difícil exercício de compatibilização de riscos e benefícios, aceitar que o mundo não é perfeito, nem se acomoda à complexidade e formalismo da mais bem-intencionada e ampla legislação. Esta realidade, que infelizmente prevaleceu na gestão política durante a Pandemia, é expressão de uma tendência actual na vida portuguesa, recupera hábitos autoritários antigos e lança a semente totalitária pela excessiva normatização da vida, pela imposição de regras, às vezes até propostas legislativas absurdas em Democracia pela limitação da liberdade de pensamento e de expressão. António Barreto e José Pacheco Pereira denunciaram esse atropelo com firmeza e bem importante seria que essa indignação permeasse a sociedade e despertasse inteligência e acção.

Estamos, de facto, num momento crucial em relação ao combate à Pandemia, mas não só, é também o combate pelo Futuro, por uma sociedade livre aberta e democrática sem a tutela opressiva dum Estado omnipresente. Estes são os dois grandes combates do nosso Tempo português. A Pandemia não está ainda controlada – convém recordar isso aos mais entusiastas! –, não obstante o bom ritmo do processo de vacinação, a que me referi também no artigo anterior. Parece que estamos destinados a repetir erros e a resvalar no precipício.

Junho, com os seus feriados e as tradicionais festas populares por todo o País, será um turning point! Haverá soluções possíveis que, promovendo o respeito pelas normas sanitárias essenciais, tendo em conta o ritmo da vacinação e a realidade actual, contribuíssem para mitigar a solidão e compensar a necessidade social de convivência feliz? Foram discutidas e consideradas? Não é essa a responsabilidade da governação numa sociedade aberta e democrática que encontra a sua legitimidade no respeito pela Lei e no cumprimento rigoroso dos procedimentos democráticos? Pressupõe vários requisitos. Informação, rigorosa, isenta e tão completa quanto possível, respeito pela Verdade, pelos direitos de Cidadania e pelo Bem Público, capacidade de decidir sob pressão, sentido de responsabilidade e coragem, moral e física.

Tudo isto, e mais alguma coisa subtil e discreta, mas que suscita adesão e a mobilização de vontades, e que designamos em latim por Auctoritas. E isso é o que me parece ter faltado na vida política, do combate à Pandemia, com a excepção clara da actual task force do Programa de Vacinação, e que receio poder estar ausente no combate necessário pelo Futuro! Auctoritas definida no direito romano como precedendo de um Saber, uma capacidade moral para emitir uma opinião qualificada, inspiradora, que se outorga a um indivíduo ou a uma série de cidadãos e cuja legitimação provém do reconhecimento social. Cícero afirmou Cum potestas in populo auctoritas in senatu sit, isto é, o Poder reside no Povo mas a Autoridade está no Senado! Mas essa Autoridade foi designada por Potestas – o Poder –, que é a expressão da Soberania do Estado e dos seus magistrados lato sensu, hoje bem mais complexa, que vai da estrutura política e administrativa, mas não pode ignorar o impacto dos media, redes sociais, influencers que hoje pululam na sociedade livre.

Auctoritas é diferente, a sua força provém mais da opinião e do exemplo do que da capacidade efectiva de exercício do Poder, tem a ver com excelência pessoal, força intelectual e moral de atracção, capacidade de congregação e orientação, como bem escreveu o Padre Doutor Anselmo Borges num artigo publicado em 23/1/2010 no Diário de Notícias que encontrei na preparação deste texto. Auctoritas, que provinha do conhecimento, do exemplo, da força moral e ética e não do Poder. Mas o que achei mais extraordinário neste artigo de 2010 foi a interrogação – premonitória? – do seu autor: e quando aos políticos em geral e às chamadas “autoridades civis e militares Potestas lhes falta competência intelectual, técnica, moral?

O que os tempos actuais têm evidenciado é a carência de Auctoritas nesta segunda década do século, e quando ela se manifesta, a suprema indiferença e sobranceria do Potestas, como ficou claro nesta posição recente perante o manifesto de personalidades militares e dois ex-chefes de Estado.

De facto, o combate pelo Futuro não pode limitar-se a esta visão centralizadora, estatizante, que parece dominar o que se vai sabendo dos Programas ditos de Recuperação e Resiliência. Gestão política da Informação confundida com acção prática decisiva, falta de discussão crítica, séria e fundamentada, da estratégia a seguir na Saúde, na Educação, na Justiça, na organização das Forças Armadas, cujas carências são incompatíveis com as exigências da sua missão, na Energia que tanta celeuma suscitou e que de repente se esfumou. Pode a sociedade civil permitir-se ao luxo de abdicação e indiferença e deixar silenciar a sua voz? E o que pensa a comunidade político-partidária?

Talvez esta indiferença seja a razão para a pobreza intelectual e a falta de exigência no debate político, no governo e na oposição, que mais parecem preocupados com os soundbites das suas intervenções, com a sua presença mediática obsessiva, assim contribuindo para o ruído acrítico que pulula no espaço público impedindo debate sério e fundamentado. Isso é que corrói a Democracia e esse caminho sabe-se aonde conduz, à irrelevância, à estagnação e à pobreza. E esse é o caldo onde germina a semente totalitária!

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