27 de Maio: um discurso histórico
Ao acolher o desafio da Carta Aberta e dar satisfação, ainda que parcialmente, às reclamações nela contidas, João Lourenço adquiriu, seguramente, um lugar na História de Angola, assumindo “a estatura de um verdadeiro homem de Estado que rompeu com a barbárie”.
Sinto-me obrigado a reconhecer publicamente a importância histórica do tão inesperado quanto corajoso discurso proferido pelo Presidente João Lourenço no dia 26 de Maio ao país, em que pediu perdão e reconheceu a amplitude das violações dos direitos humanos que se seguiu ao 27 de Maio, ordenando a localização de algumas vítimas e devolução dos restos mortais às famílias. Salientou igualmente a “angústia que as famílias ao longo destes anos carregam consigo, por falta de informação sobre o destino dos seus entes queridos”.
No caso particular da minha família, foi um sofrimento indescritível para os meus pais, que perderam dois dos três filhos, com a angústia de não saberem, durante muitos anos, se estavam vivos ou mortos. É difícil imaginar sequer o que isso significa. Quando se é vítima de um acidente e seguido um funeral, com o período de luto, há uma aceitação da fatalidade, que não significa esquecimento; mas quando há um desaparecimento forçado, a angústia sobre a sorte do familiar, agravada pela falta de informações e mutismo total de quem tinha o dever de informar, é algo de terrível, uma morte lenta de quem a sofre. Os familiares são as vítimas indiretas da repressão.
João Lourenço quebrou “o silêncio de mais de quatro décadas”. Inverteu a política de avestruz dos seus antecessores e deu satisfação a algumas das mais importantes reivindicações dos sobreviventes e familiares das vítimas. É óbvio que se pode questionar as razões que o levaram a tomar esta decisão, que surpreendeu o próprio Comité Central do MPLA e mesmo os círculos próximos. Mas não podemos desvalorizar a importância histórica do ato, a pretexto de que visa reduzir o desgaste do regime, alargando a sua base de apoio e fomentando o seu prestígio pessoal. As motivações poderão ter sido as menos louváveis, mas que o fez, fez.
Para dizer a verdade, nunca pensei que, no meu tempo de vida (lifetime, como se diz em língua inglesa), tal fosse possível e o dia 26 de Maio foi um dia de grande alegria para mim.
A carta aberta
Na véspera, a Associação 27 de Maio e o Grupo de Sobreviventes tinham enviado uma Carta Aberta ao Presidente, que terminava da seguinte forma:
“Apelamos a V.Exa. para que, com a sua autoridade, inverta este caminho sem sentido e promova uma verdadeira Reconciliação, concretizando os objectivos por nós apontados e dando satisfação aos anseios das famílias dos desaparecidos e da tão sofredora nação angolana.
Assim fazendo, V.Exa. assumirá um lugar relevante na História política do país, adquirindo a estatura de um verdadeiro homem de Estado que rompeu com a barbárie.”
O pessimismo envolvia a remessa da carta ao destinatário, já que a CIVICOP (comissão criada pelo governo para homenagear as vítimas dos conflitos políticos) programara para o dia 27 de Maio eventos que tiveram como expoente a deposição de uma coroa de flores junto à estátua de Agostinho Neto, o responsável máximo pelo massacre que ceifou a vida de cerca de 30.000 angolanos.
No próprio dia em que a carta aberta foi enviada ao Presidente, teve lugar uma reunião dessa comissão, em que Pinto de Andrade, representante do MPLA e membro do seu Bureau Político, declarou que “todas as contradições relativas ao 27 de Maio foram ultrapassadas”, acusando “gente de fora” de persistir em levantar questões e não querer pôr uma pedra no assunto. Ou seja, a exigência de pedido de perdão pelo Presidente da República, de busca da Verdade História, localização dos restos mortais das vítimas e sua devolução às famílias e identificação dos responsáveis pelos massacres, eram consideradas absurdas, ignoradas e classificadas como oriundas de “pessoas de fora”, tal como, curiosamente, o regime colonial clamava que as lutas de libertação nacional provinham de “inimigos externos”, sobretudo Rússia e China, de onde vinham todos os males. O membro do Bureau Político ignorava o teor do discurso que o Presidente viria a fazer no dia seguinte, ficando, assim, totalmente desautorizado.
Ao acolher o desafio da Carta Aberta e dar satisfação, ainda que parcialmente, às reclamações nela contidas, João Lourenço adquiriu, seguramente, um lugar na História de Angola, assumindo “a estatura de um verdadeiro homem de Estado que rompeu com a barbárie”.
Em Portugal, aqueles que ficaram passivos perante as atrocidades em Angola, que se seguiram ao 27 de maio, tendo o dever moral e ideológico de as denunciar e pugnar pelo respeito dos direitos humanos, a exemplo do que fizeram com o Chile de Pinochet ou a Argentina de Videla, deviam, agora, autocriticar-se pelo seu silêncio, baseado na “necessidade de manter boas relações com o MPLA, partido irmão”. O irmão transformou-se no suporte de um dos regimes mais corruptos do mundo, em que o proclamado socialismo foi totalmente renegado, trocado pelos dólares em contas bancárias na Suíça e euros em Portugal.
Insuficiências
Seria limitado não reconhecer insuficiências, e mesmo contradições graves, na alocução. Por um lado, na parte final do seu discurso referiu que “A história não se apaga, a verdade dos factos deve ser assumida”, mas incorreu em contradição logo no início, quando classificou as manifestações e atos revoltosos do 27 de maio de “tentativa de golpe de Estado”, imputando a morte de comandantes ao “grupo de cidadãos organizados” e classificando a repressão governamental como “reação desproporcional e levada ao extremo” para “reposição da ordem constitucional”.
Há opiniões diferentes sobre a questão de saber se houve realmente uma tentativa de golpe de Estado ou apenas atos de revolta. O próprio regime deixou de utilizar de forma generalizada a expressão “tentativa de golpe de Estado” para privilegiar “acontecimentos do 27 de Maio”. Sempre considerei que não houve tentativa de golpe de Estado, pois não se visou derrubar Agostinho Neto, mas sim alterar a política seguida. Defendo, aliás, que deveria tê-lo sido (tentativa de golpe de Estado), pois já que se teve a fama deveria ter-se o proveito. Acresce o facto de os golpes de Estado triunfantes serem denominados Revolução, como sucedeu com o 25 de abril em Portugal, enquanto se reduzem a tentativa (de golpe) quando fracassam.
Por outro lado, há indícios sólidos de que a morte de nove pessoas, encontradas numa ambulância incendiada, resultou da DISA (polícia política do regime), com o objectivo de justificar a repressão. De notar que, entre as nove vítimas, algumas eram favoráveis a Nito Alves. Agostinho Neto, que no dia 27 de maio afirmara que “os camaradas revoltosos tinham de fazer um percurso de reeducação”, substituiu o discurso, após a descoberta da ambulância carbonizada, por “Não vamos perder tempo com julgamentos!”.
João Lourenço assumiu como verdadeira a narrativa do grupo vencedor que, longe de se basear numa investigação histórica, teve como motivação justificar a chacina, o ajuste de contas. Há dúvidas legítimas sobre a autoria da morte dos comandantes, razão pela qual se torna indispensável a busca da Verdade Histórica, com apuramento de responsabilidades, por mais dolorosa que ela seja. Quem não teme, não esconde. À partida, não é de rejeitar nenhuma hipótese de trabalho e devem promover-se investigações isentas, enquanto ainda são vivos atores importantes, pois a história não se pode apagar. Os documentos subsistem, mas a vida humana tem prazo, sendo vital a recolha de depoimentos dos intervenientes de 1977, quer do lado vencedor, quer do vencido.
À partida, sabe-se que a História é feita pelos vencedores, de acordo com as suas conveniências. Quem leia as versões dos vencedores e vencidos da II Guerra Mundial não encontra muita similitude, mas existe uma História, com factos, para além da sua interpretação.
Outra insuficiência reside em assumir a responsabilidade do Estado sem, no entanto, mencionar pessoas concretas, como se não houvesse um Presidente omnipotente e pessoas à frente das instituições. Havia um responsável máximo, havia responsáveis concretos. Estes têm nomes, tal como os ditadores de outros países também tinham nomes…
Não chega João Lourenço pedir perdão, tanto mais que ele não cometeu individualmente nenhum homicídio. Mas há pessoas com responsabilidades, seja ao nível superior, seja ao nível da concretização, que devem pedir perdão, sob pena de se cumprir o adágio “a culpa morre solteira”. Só poderá haver um perdão efetivo por parte dos familiares e sobreviventes dos massacres se o pedido de perdão for formulado por quem tem as mãos manchadas de sangue e por quem deu as ordens para matar. Só se perdoa quando se sabe a quem se perdoa! E ninguém é obrigado a perdoar, sobretudo quando o pedido de perdão não for genuíno e verdadeiro.
Não deixa de ser contraditório reconhecer a responsabilidade do Estado pelo que se passou em 1977 e 1978 e, dias depois a tal reconhecimento, nomear uma comissão ministerial para tratar das comemorações em 2022 do centenário de Agostinho Neto, ocultando o seu papel histórico na chacina de tantos angolanos. A figura máxima do Estado era Neto, que tinha jurado cumprir a Lei Constitucional de Angola e a violou de forma tão flagrante.
Um caminho a seguir
Quando um copo de água tem água a meio, um pessimista dirá que está meio vazio e um optimista que está meio cheio. Seja qual for a perspetiva, deve-se encher o copo até acima.
João Lourenço teve o mérito de abrir o caminho que parecia fechado, começar a encher o copo que estava vazio. Mas o copo ainda está a meio. Impõe-se, agora, melhorar as vias para uma verdadeira e efetiva Reconciliação. Urge, pois, buscar a Verdade Histórica, investigar o que verdadeiramente se passou, abrir os arquivos do Estado, fazer luz sobre episódios ocultos ou ignorados, com isenção. Nessa busca, acabará por se saber quem foi quem, designadamente quem violou Direitos Humanos e causou tanta dor. Não certamente para linchar na praça pública, mas para lhes dar a oportunidade pela qual deviam ansiar de pedir perdão às vítimas e seus familiares, obtendo, também eles algozes e mandantes, a “paz de espírito necessária”.
A CIVICOP deverá, também, converter-se em Comissão de Verdade, a exemplo do que sucedeu em outros países, designadamente a África do Sul.
Termino, sufragando o apelo final do Presidente: “Viva a Paz e a Reconciliação Nacional”. Mas acrescento: baseadas em princípios civilizacionais, na Verdade Histórica, na Justiça, na Dignidade!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico