900 milhões, a peneira que não tapa o sol

Após a saída dos Rankings, o tema voltou à ordem do dia: quais as razões que levam ao aumentar do fosso entre o ensino estatal e o privado?

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Rui Gaudêncio

Como tive oportunidade de escrever, deveria ser óbvio para todos que os Rankings não podem ser o único indicador de qualidade das escolas nem o único fator de comparação entre ensino estatal e privado. O que deve ser fundamental em qualquer escola é aprender e para que essa aprendizagem aconteça há condições que devem estar reunidas. Parece-me que é aqui que reside a maior diferença entre as diversas escolas do ensino privado e estatal.

Como sabemos, não é possível comparar o trabalho desenvolvido com os alunos oriundos de ambientes socioeconómicos desfavorecidos, de famílias desestruturadas, com o realizado com os alunos de famílias estruturadas e com desafogo financeiro. Juntando a esta premissa outra que nos dá dados concretos de que as escolas estatais são frequentadas por mais de 350 mil alunos apoiados pela Ação Social Escolar e 80 mil com necessidades educativas especiais e que no ensino privado os critérios de seleção são “apertados”, entrando apenas os mais aptos academicamente e de meios socioeconómicos privilegiados, poderíamos dizer que estas seriam as causas principais para a grande diferença. Mas, se concordo que, obviamente, isso também é um problema, não concordo que sejam os únicos nem que depois de identificados não se faça nada para os combater, preferindo, porque é mais fácil e poupa-se milhões, “atacar” os Rankings.

Já aqui tive oportunidade de dizer que dois dos grandes males, que são consequência do desinvestimento e que têm repercussões diretas nas aprendizagens, são a permissão legislativa de constituição de turmas multinível/mistas (mais do que um ano na mesma turma) e numerosas. Não dar autonomia — que os privados têm — às direções escolares para adaptar o número de alunos por turma, consoante as necessidades, é evidentemente um ponto contra a escola estatal. Felizmente não sou só eu e os meus colegas de frente de batalha que o dizemos, começa a ser debatido e a receber a devida atenção por parte dos académicos.

Sobre as turmas mistas/multinível,  já David Justino tinha concordado que são uma “chaga social”. Mais recentemente referiu-se ainda à questão da dimensão das turmas, disse em entrevista ao PÚBLICO, aquando a apresentação dos Rankings Escolares:  “Era uma área em que o ministério devia abdicar de fixar um determinado montante. Acho que é um espetáculo deprimente ver a Assembleia da República, nos últimos anos, a tomar constantes iniciativas para definir o número de alunos por turma. Não. Quem sabe o número adequado deve ser a escola. Precisamente para poder ter turmas eventualmente mais pequenas com alunos que têm mais dificuldades e turmas maiores com alunos que não têm tanta dificuldade, mas é um problema pedagógico que só a escola conhece”. Acredito que quando o conhecimento empírico se junta com o académico, respeitando-se enquanto conhecimentos válidos, podemos arranjar soluções.

Receber alunos de todos os meios sociais e económicos, as turmas serem numerosas e muitas delas de multinível são premissas que, juntas, geram um problema que já se tornou endémico na escola estatal e que por isso tem sido ignorado por todos aqueles que têm poderes de decisão, a indisciplina.

A indisciplina, a violência quer física quer psicológica em meio escolar, tem sido nos últimos anos completamente ignorada pela tutela. Ninguém nega que este é um problema que leva a que a qualidade do ensino estatal baixe constantemente, como é possível confirmar no relatório da OCDE que indica que os professores portugueses estão entre os que gastam mais tempo de aula a controlar comportamento dos alunos. Obviamente que quanto mais se gasta a controlar a disciplina menos se gastará a ensinar, menos tempo a lecionar e com menos qualidade devido às constantes interrupções. Por mais que se tente ir “abafando” os casos de indisciplina nas escolas, dizendo até, contrariando os factos, que são casos residuais, a verdade que nos chega através de partilhas nas redes sociais é outra. Enquanto se ignorar este assunto, não o assumindo como um problema, estaremos em sentido contrário. Não podemos subjugar toda a comunidade escolar a pequenos marginais que se recusam a cumprir regras mínimas de saudável convivência comunitária. Mas não nos deixemos enganar, isto só é possível quando tivermos meios suficientes. Legislação que permita que os dirigentes possam agir em conformidade e um mecanismo que possa responsabilizar os pais.

E se ainda tive alguma esperança que o Plano de Recuperação de Aprendizagens pudesse de uma ou outra forma abordar estes três problemas endémicos, essa dissipou-se quando, mais uma vez, se falou muito nos milhões que se irão gastar e muito pouco na forma como irão executar um conjunto de intenções demasiado vagas.

A título de exemplo da demagogia que move o atual governo, anunciou-se mais 3300 professores para as escolas, mas contas feitas estamos a falar de meio professor por escola. Recuperar o quê? Mais uma boa oportunidade perdida. Não sei quem vai lucrar com o caminho escolhido, tenho a certeza de quem vai perder: os alunos!

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