“Cadê” todo o mundo?

Saudades do Brasil e da sua beleza. De ir caminhando na rua e encontrar beleza onde menos esperava, tal como acontece no português do Brasil com a palavra.

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Reuters/PILAR OLIVARES

Sinto falta de muitas coisas do Brasil e, cada vez mais, de algumas palavras e de uma maneira de dizer as coisas que cá não há. Depois de ter somado tantos elementos ao léxico, não poder usá-los ao voltar para Portugal é frustrante. Como se estivesse cheia de moedas que não têm valor neste país, e que não posso trocar. Quantas vezes não me saem expressões em português do Brasil, para as quais não encontro equivalência, e que exprimem tão melhor o que sinto do que as que tenho ao dispor deste lado do Atlântico. Como o “cadê”. Cadê o “cadê”? Uma só palavra que facilita a vida, que nos dá o que um “onde está?” não consegue. Uma simplificação linguística para um momento em que estamos à procura de alguma coisa ou de alguém e no qual é bom economizar tempo, até nas palavras. Um termo que também serve para ser usado sozinho: “Cadê?”, com um levantar de braços e um erguer de sobrancelha de quem perdeu até o sujeito e o predicado, um esgar de quem genuinamente não faz ideia.

Saudades de todo o mundo dizer “todo o mundo”. “Toda a gente” não basta, é muito diferente, e acho que todo o mundo entende isso.

Saudades do Brasil e da sua beleza. De ir caminhando na rua e encontrar beleza onde menos esperava, tal como acontece no português do Brasil com a palavra. Posso estar a escrever um texto e, do nada, pôr a palavra beleza em qualquer lugar sem respeitar as regras da sintaxe, que vai ficar “beleza”.

E temos de concordar que um povo que vive no gerúndio tem outra melodia. É um povo que sabe levar a vida com uma cadência e musicalidade que mostra que estamos em curso e não acabados, uma delicadeza de quem sabe que o “vou embora” é uma crueldade, mas que o “estou indo” é elegância. De quem sabe que “querer” é veemência, mas “estar querendo” é amabilidade, de quem sabe que “fazer” é imutável, mas “estar fazendo” é metamorfose. Saudades dessa fluidez de quem vai levando, dessa renovação de quem está amando, dessa sabedoria de quem está vivendo.

É foda ter saudades do Brasil. Porque o Brasil é foda. É também o lugar da polivalência significativa da palavra “foda”. Foda pode ser muito bom, muito mau, ou apenas uma forma de expressar indiferença numa situação em que não se sabe o que dizer.

No Brasil não era de “outra maneira”, era de “outro jeito”. E tudo tinha jeito. Tirando alguns “caras”, de quem se dizia “esse daí não tem jeito… é assim mesmo.” Saudades de dizer “cara”, que não é o mesmo do que “gajo”, porque ninguém se vira para outra pessoa e diz “gajo, não estás bem a ver…” Saudades do “rolé”, essa palavra que não tem correspondente, não é passeio, não é saída, é algo no meio. E saudades de sentimentos que só algumas expressões designam, como “estar a fim”. Em Portugal ninguém deixa de fazer alguma coisa porque não está a fim. No Brasil, o estar a fim é levado muito a sério e respeitado religiosamente. Incluindo, estar a fim de alguém. Assim como o “não estar nem aí”. “Fiquei com ele”, em Portugal é permanência; “fiquei com ele”, no Brasil, é uma vez só.

Saudades de paquerar em vez de engatar, de “ficar com bode” em vez de ficar com pó de alguém, de achar um “porre” em vez de uma seca, de ser ruim em vez de mau, de zoar em vez de gozar, de gozar em vez de vir. Saudades da “galera”, de “estar de bobeira”, do “nossa!”, do “legal”, de “jogar pra lá”, do “gente”, de ser garota, do tapa na cara, do “chôpe”. Das interjeições que não dizem nada, mas contêm tudo como o “puts e o “pô” e das perguntas que antecedem as saídas: “vamo?” ou “partiu?”.

Saudades das diferentes formas de se esboçar um talvez, como: “se pá” ou “se bobear”. Até tenho saudades das expressões menos boas, do “esculacho”, de “estar machucada”, de “ficar puta”, de “xingar” e de “ficar de saco cheio”. Saudades de “torcer pra dar certo”, do “deu errado”, de “fechar com alguém” e dos infinitos tratamentos: meu bem, “mermão”, muleque, parceiro, “véio”, brother, “bicho”...

Saudades das trocas de conjugação, “tu vai”, de um, ser muitos: “é nois”, do grude, do “de boa” e do “tá ligado?”.

“E aí, rola?”, é mais suave que “e então, vai acontecer?”. “Sacou?” é mais estiloso que “percebeste?” e um “bom papo” é mais fecundo que uma boa conversa. Sacou?

Sinto falta da forma mutável de agir, de não assumir a finitude dos actos encarando a sua volatilidade ao “dar uma dormida”; “dar uma aparecida”; “dar uma conferida”. No Brasil há genuíno prazer em dar. Tanto, que até os verbos intransitivos dão.

Saudades da forma como se chutava o excesso de negativismo, até das frases, omitindo a dupla negativa: “Sei não…”; de nos pormos sempre em primeiro: “Me perdi” e de superlativizar tudo, até os verbos, porque às vezes melhor do que fazer é superfazer: “Eu superfaço”; “Eu superconcordo”.

Mas também me aconteceu o inverso. Quando estava no Brasil, algumas vezes, queria empregar expressões portuguesas que lá não se usavam, e cujas substituições me pareciam insuficientes. Por exemplo, quando queria dizer que uma comida tinha um sabor bom, e dizia à maneira portuguesa “isto sabe tão bem”, era recebida com inquietação: “Sabe bem como? Tem sabedoria?” Queria especificar que aquele açaí ou pão de queijo sabiam bem e foi-me explicado que deveria dizer que tinha um gosto bom. Certo. Mas, então, e um mergulho depois de duas horas no “ônibus”? Também tem um gosto bom? Usar o sabe bem para comidas e sensações em vez de para sabedoria seria uma grande trapalhada, segundo diziam. Porquê? Não se sabe bem. O que se sabe bem é que as coisas no Brasil, em geral, sabem mesmo bem. Ou, como se diz lá, são “gostosas pra cacete”, ou “pra xuxu”. Ou “pra” outras coisas que quando se dizem por lá têm menos peso do que aqui.

Outra coisa que me gerou alguns desentendimentos foi o nosso “sempre” usado assim: “Sempre vens hoje?” Lembro-me da confusão de quem recebia esta mensagem: “Sempre? Ou hoje?” Os dois não podiam coexistir. O Brasil será sempre mais hoje do que sempre. Assegurar o hoje é um passo suficientemente grande, não há necessidade de chamar a perenidade ao barulho. A nossa expressão não tem esse sentido perpétuo do “sempre”, mas não deixa de ser uma confirmação de uma combinação, o que pode explicar que não tenha sido incorporada por lá, onde recordar o planeado é indelicadeza. Também cheguei a enviar a uma pessoa: “Sempre vem?” A resposta foi: “Sempre, não, mas hoje vou.” Uma resposta de quem sabe que só hoje é que se conquista a eternidade. E isso o Brasil sabe bem. Saudades. Hoje e sempre. “Valeu!”

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