Contratação pública e machine learning – mais do que nunca, um caminho que urge trilhar

O principal desafio que se coloca à utilização de machine learning no combate a fenómenos de natureza corruptiva na contratação pública assenta, precisamente, na necessidade de recolher e de estabilizar todo o acervo de dados que permitirá à “máquina”, num momento seguinte, desenvolver o mais eficazmente possível o seu trabalho.

Pela Lei n.º 30/2021 (DRE) aprovou-se, muito recentemente, um conjunto de medidas especiais no âmbito da contratação pública, tendo-se, na ocasião, procedido também, entre outras, a importantes alterações no Decreto-Lei 18/2008, 2008-01-29. No contexto das primeiras, importa destacar as medidas relativas aos projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e do Plano de Recuperação e Resiliência, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) e, ainda, de bens agroalimentares.

Independentemente da sempre estimulante discussão quanto à pretendida eficácia das soluções legalmente adotadas, o que para nós agora mais importa é perceber de que forma se podem otimizar as novas tecnologias para potenciar as soluções que se encontram legalmente consagradas, neste e noutros diplomas em que os interesses financeiros do Estado e da UE se imponham salvaguardar.

E isto é tão mais relevante quando nos é exigido, mais do que em qualquer outro momento da história, que saibamos responder aos novos desafios em curso, apresentando resultados, de forma eficiente e eficaz, e garantido sempre a prossecução do interesse público. Neste particular, o conjunto de medidas adotado ganhará, e muito, se se souber, concomitantemente, fazer um bom e adequado uso das novas tecnologias. Refiro-me, concretamente, à possibilidade de utilização da machine learning como forma de deteção de corrupção no âmbito da contratação pública.

A corrupção pode, em nosso entender, ser estimada e calculada com base em métricas claras de objetivos. No entanto, temos como certo que tal apenas ocorrerá se os dados recolhidos pelas entidades se apresentarem qualitativamente confiáveis. Dados confiáveis são, pois, dados que podem ser adequadamente trabalhados pela “máquina” e permitir, desse modo, traçar tendências ou desvios nos comportamentos assumidos pelos diferentes operadores económicos. Essas análises são, naturalmente, ferramentas poderosas e de elevada eficiência na proteção dos interesses financeiros do Estado e da própria União Europeia. E, se nada mais houvesse, tal atributo deve impelir-nos, a todos, a uma profunda reflexão.

Esse enorme desafio que se coloca aos Estados da UE para identificarem, isolarem e, sobretudo, para mensurarem, com recurso a machine learning, a prática de fenómenos desviantes e de comportamentos corruptivos no contexto da apelidada public procurement, exige que se consiga identificar, num primeiro momento, de forma muito clara, quais os objetivos que se pretendem atingir com essa mensuração. Neste ponto, terá que se prever e estabilizar a taxonomia que deverá ser utilizada para que se saiba, com rigor, o que é que deve procurar-se e como fazê-lo.

Todo este desenho concetual e a respetiva estrutura de dados que o alimenta devem ser suportados por uma clara identificação de quais sejam as técnicas e os expedientes corruptivos mais usuais, acompanhando-as da lista dos respetivos indicadores, por forma a habilitar o algoritmo a procurar efetivamente o que é pretendido.

A ideia passa por conseguir identificar, nos dados recolhidos, os diferentes alvos, por forma a confirmar se os indicadores selecionados se revelam ajustados ao perfil das nossas necessidades em matéria de risco, pois só assim poderemos concluir pela correção dos parâmetros selecionados e proceder, concomitantemente, à validação dos referidos indicadores.

Esse universo de indicadores poderá naturalmente beber do próprio procedimento pré-contratual, da natureza dos vários players envolvidos ou mesmo do respetivo perfil de risco associado a cada um deles, pelo que os indicadores de risco como os relativos aos fornecedores/prestadores, às entidades adjudicantes ou mesmo os relativos a conexões políticas suscetíveis de gerarem conflitos de interesses, se podem, naturalmente, constituir como indicadores preferenciais numa primeira fase do estadiamento da machine learning.

Neste enquadramento, temos para nós que o principal desafio que se coloca à utilização de machine learning na medição e combate a fenómenos de natureza corruptiva na contratação pública assenta, precisamente, na necessidade de recolher e de estabilizar todo o acervo de dados que permitirá à “máquina”, num momento seguinte, desenvolver o mais eficazmente possível o seu trabalho. Ora é precisamente aqui que as coisas ainda parecem falhar, sobretudo se tivermos presente a enorme dificuldade que constitui para todos nós a obtenção de um conjunto demonstrativo de casos de corrupção no âmbito da contratação pública. E mesmo o que se sabe nessa matéria é ainda informação muito limitada, dado que se suspeita que possa haver muito mais, ao abrigo de uma sofisticada engenharia contratual, nem sempre detetável pelos tradicionais mecanismos de controlo. Ora esta falta de informação pode, naturalmente, condicionar o próprio processo de aprendizagem no contexto do recurso ao machine learning como forma de prevenção e deteção de comportamentos de natureza corruptiva.

Se é verdade que o caminho nestas coisas nem sempre é fácil, também é verdade que quanto mais cedo o iniciarmos, melhor será para todos nós.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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