Ode ao filho único

Esta segunda-feira é Dia dos Irmãos, e como tal é vê-los a espalhar amor por essas redes sociais fora, uma bonita forma de expurgar todas aquelas bulhas por causa do colchão de cima do beliche ou pela herança territorial daquela tia-avó de quem mal sabiam o nome.

Às vezes, vale a pena ser do contra. Tornou-se quase lugar-comum dizer que ter irmãos é uma benção, e isso deixa os filhos únicos numa posição algo frágil. É como se estivessem a ser lançados para um grau menor de legitimidade na experiência social, porque a solidão é subvalorizada. Não tenho como dizer quão extraordinário será ter irmãos, porque nunca os tive, mas admito desde já a maravilha da minha experiência: adoro e sempre adorei ser filho único.

Esta segunda-feira é Dia dos Irmãos, e como tal é vê-los a espalhar amor por essas redes sociais fora, uma bonita forma de expurgar todas aquelas bulhas por causa do colchão de cima do beliche ou pela herança territorial daquela tia-avó de quem mal sabiam o nome. Nada contra, e é de exaltar essa atitude tão saudável e apaziguadora. A minha pergunta é: onde está, então, o dia dos filhos únicos?

Confesso que poderá haver alguma injustiça na minha tese. Afinal de contas, eu não sou um filho único puro e duro. Passo a explicar: toda a minha existência familiar é atípica. Costumo dizer que tenho uma família-mais-ou-menos. Tenho pai? Mais ou menos. Sei que está vivo, mas não nos relacionamos há mais de vinte anos. Em compensação, tenho um padrasto muito melhor do que qualquer pai. Tenho avós? Mais ou menos. A minha relação com os avós paternos era menos habitual do que um trânsito de Vénus e, embora os ame loucamente, não cresci perto dos meus avós maternos, emigrados na Alemanha durante a minha infância e boa parte da adolescente. Tenho irmãos? Mais ou menos. Consta que o meu pai teve filhos que nunca conheci, e o meu padrasto trazia um filho de outro casamento com quem nunca tive relação íntima.

Posto isto, sinto que estou habilitado para falar em nome dos filhos únicos, esses lobos solitários que se viram obrigados a recorrer à imaginação para combater o aborrecimento durante o crescimento, e que assim ganharam uma outra paleta de competências trazidas pelo silêncio, pela falta de interrupção constante dos seus pensamentos e pela necessidade de encontrar a solo uma leitura do mundo.

E, assim, defender a instituição de um Dia do Filho Único, quanto mais não seja para fazermos posts exultantes do quão bom foi crescer com tudo só para nós ou o quão bom é ter a independência de não ter a quem dar cavaco pela tomada de uma decisão que diga respeito a um apelido. Evidentemente, nem tudo são jasmins nesta relação solitária: não temos com quem comentar a barbaridade que foi a atitude da tia Arminda e não tivemos oportunidade de derrubar, em dupla ou tripla, aquela vida de luxo que o Ken deixou de ter quando o Action Man apareceu no quarto para conquistar a loura mais bela do pedaço.

Claro que os irmãos terão sempre uma indignação a partilhar, comentando que a gente sabe lá o quão bonito e importante é ter um irmão. Eis um facto potencialmente incontestável, respondo eu, mas é difícil sentir falta de uma coisa que nunca se teve.

Sugiro até outra ideia: entre irmãos, façam umas férias uns dos outros. Finjam, vários dias por ano, que são filhos únicos. Façam férias sozinhos, não olhem para o telefone em busca do nome “mana”, virem-se por vocês próprios, ajudem os pais com as vossas próprias mãos e não em equipa. Não para promover o afastamento gratuito, mas para que consigam encontrar outras valências na idiossincrasia de estar sozinho – por mais que assuste, tem valor. Palavra de filho único.

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