A brincar, a brincar…

Nunca como hoje a infância foi tão estudada e debatida. No entanto, parece haver uma enorme discrepância entre o que sabemos ser importante e o que estamos a fazer com as crianças.

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Segundo a OMS, as crianças devem ter pelo menos três horas de brincadeira livre por dia Paulo Pimenta

Quando paramos para ouvir uma criança do 1.º ou 2.º ciclo descrever um dia seu, é mais ou menos assim: “Eu levanto-me pelas 7h, às 8h vou para a escola. Os meus pais trabalham muito, por isso fico no ATL a fazer os trabalhos de casa, e eles só me vão buscar ao final do dia. Depois tenho futebol às segundas e quartas e tenho inglês às terças e quintas. Ao fim de semana vou para a explicação, e tenho de estudar. Quando o dia acaba, estamos todos cansados e cada um vai para o seu quarto descansar ou ficar no telemóvel.” E o tempo livre, realmente livre?

Afinal, o que é brincar?

Podemos começar antes por dar exemplos do que não é brincar — não é um passatempo ou um entretenimento, não é um jogo com regras predefinidas, não é uma atividade proposta ou pensada por alguém, não é uma atividade extracurricular nem o uso de tecnologias. Não é útil nem um meio para um fim, mas sim um fim em si mesmo. É um movimento espontâneo, inato em todos nós, em que a criança decide quando começa e acaba. No brincar, o processo é mais importante do que o produto final, a criança envolve-se na atividade pelo prazer no processo. Através da brincadeira, desenvolve competências motoras, sensoriais, sociais, cognitivas, emocionais e de linguagem. A brincar, vai resolvendo problemas, preparando-se para o inesperado, experimentando diferentes papéis, criando significados, descobrindo-se a si e ao mundo.

Como se brinca?

Brincar com o corpo é a primeira brincadeira do bebé — levar o pé à boca, brincar com as mãos, rolar para várias posições, tudo isto é importante para o desenvolvimento do esquema corporal. Depois surgem as brincadeiras no banho, fazer “cucu” escondendo a cara, baloiçar ou o cavalinho nas pernas do adulto. Quando o bebé começa a gatinhar as brincadeiras desenvolvem-se por toda a casa: empurrar objetos, passar debaixo dos móveis, começam a desafiar-se cada vez mais no espaço. As primeiras brincadeiras com objetos consistem em explorá-los com a boca. Tudo serve para brincar, bater com objetos um no outro, atirá-los para o chão. O bebé começa a ter cada vez mais interesse em montar e desmontar construções e em usar objetos do dia a dia. Estes objetos servem de estímulo para a criatividade, imaginação, a organização do pensamento e mesmo para o desenvolvimento da linguagem.

Só depois de a criança explorar a relação dos objetos, combinando-os e registando as suas potencialidades, enquanto cria conceitos, é que começa a expressar-se através do jogo simbólico (faz de conta). Através deste jogo tem a oportunidade de resolver problemas e partilhar um objetivo comum, expressar livremente as suas emoções, fantasias e imaginação. O brincar simbólico permite à criança manifestar pensamentos e emoções através da ação.

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Tempo para brincar!

Nunca como hoje a infância foi tão estudada e debatida. No entanto, parece haver uma enorme discrepância entre o que sabemos ser importante e o que estamos a fazer com as crianças. É preciso ouvi-las, valorizar as suas necessidades. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde publicou um conjunto de recomendações, nomeadamente que as crianças devem ter pelo menos três horas de brincadeira livre por dia. No estudo de 2018 Portugal a Brincar, coordenado pelo professor Rui Mendes, é referido que apenas 25% das crianças portuguesas até aos 10 anos brincam estas três horas diárias. O que explicará esta contradição?

No mesmo estudo, quando se questiona os pais sobre a importância do brincar, apenas uma pequena percentagem valoriza aspetos como “a criança precisa de se divertir”, “ajuda a criança na socialização” e “auxilia no desenvolvimento físico e motor”. Não são apenas os pais, mas uma cultura que parece privilegiar as competências cognitivas e o sucesso académico, apressando as crianças a serem adultas, e fazendo adormecer nelas o lado criativo e curioso, que são na verdade as aptidões que permitem a aprendizagem e o crescimento como pessoa. Com a preocupação do futuro, esquece-se o presente.

E quando não se brinca?

Em termos das consequências da falta de tempo livre, os estudos apontam para dificuldades em diferentes áreas, tanto emocionais (crianças menos resilientes, com dificuldade em gerir as emoções), como físicas (obesidade, iliteracia motora), relacionais (competências sociais menos desenvolvidas) e até cognitivas (menor flexibilidade mental e capacidade para tomar decisões). Há ainda algumas ligações entre falta de tempo para brincar e o desenvolvimento de psicopatologia, como quadros depressivos ou ansiosos. A criança que desenvolveu as suas competências através do brincar tem maiores probabilidades de responder com sucesso aos desafios com que se depara ao longo da vida.

A boa notícia é que estamos sempre a tempo de mudar.

A brincar, a brincar… se vai chegando às verdades.

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