Escultura imaterial, que só existe na cabeça do artista, atinge 15 mil euros em leilão

Intitulada Io sono (Eu sou), a obra do italiano Salvatore Garau não tem existência física. Levada a leilão em Milão, tinha uma base de licitação de 6 mil euros. “A ausência de matéria é, para mim, um acto de amor para com o desconhecido e o mistério com que quase toda a humanidade está comprometida”, diz o autor.

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A terceira escultura imaterial de Salvatore Garau intitulada "Afrodite Piange" (Afrodite chora) Imagem retirada do Facebook da Art-Rite de Milão

Será, para alguns, o passo em frente após os ready-made de Marcel Duchamp, que conheceram momento fundador no célebre urinol de porcelana (Fonte era o título oficial) que, em 1917, alterou o rumo da história da arte ao transformar um objecto de uso quotidiano em intervenção artística conceptual. Será, para outros, uma resposta à criptoarte, com existência circunscrita ao mundo virtual, que tem gerado muito debate. Antes de tudo isso, porém, temos o que é verdadeiramente Io sono (Eu sou). Trata-se de uma escultura imaterial, ou seja, que só existe na cabeça do seu autor, o artista italiano Salvatore Garau. Um “nada” que, leiloado na Art-Rite de Milão, acabou arrematada por 15 mil euros.

Artista plástico de 57 anos, nascido em Santa Giusta, na Sardenha, Garau tem trabalhado em pintura, escultura ou instalação. A ideia daquilo a que chama esculturas imateriais não nasceu com a obra Io sono que, a 18 deste mês, causou surpresa não só por ser incluída no catálogo do leilão da Art-Rite, mas por, a partir da base de licitação de 6 mil euros, acabar vendida por 15 mil. Em Fevereiro, Garau apresentara em Milão Buda em Contemplação. Na Piazza Della Scala, a pouca distância do La Scala e a exactos 25 metros da Gallerie d’Italia, onde o próprio Garau tem trabalhos expostos, um quadrado desenhado com fita branca no chão delimitava a obra. Era, de facto, o único traço visível dela: o Buda ele mesmo projectava-se da imaginação do artista para a do espectador que, lido o título, contemplava o vazio (curiosamente, houve quem chamasse ao urinol de Duchamp Buda da casa de banho).

O passo seguinte de Salvatore Garau foi levar Io sono a leilão. Como prova física da aquisição, o seu novo proprietário tem apenas um certificado de autenticidade, assinado por Garau, onde se lê: “Escultura imaterial, Abril de 2020. Para ser colocada numa casa particular, num espaço livre de qualquer estorvo de aproximadamente 150 x 150 cm”. No fim, uma nota: “O presente certificado não pode ser exposto no espaço reservado à obra”.

Apesar de o nome de Duchamp ser referido habitualmente para contextualizar Il Sono, o artista explica que a sua motivação é de uma natureza diferente. “O conceito das minhas esculturas é completamente diferente das provocações de Marcel Duchamp no início do século XX ou da arte conceptual dos anos 1960. A ausência de matéria é, para mim, um acto de amor para com o desconhecido e o mistério com que quase toda a humanidade está comprometida”.

Garau contesta também a ideia de as suas esculturas materiais serem um vazio, uma não-existência. “No momento em que decido ‘expor’ uma escultura imaterial num determinado espaço, esse espaço ganhará uma quantidade e densidade de pensamentos num ponto preciso, criando uma escultura que, apenas pelo meu título, assumirá múltiplas formas”, afirma o artista, formado na Academia de Belas-Artes de Florença e que, antes de viragem definitiva para as artes visuais, foi baterista, no final dos anos 1970, da banda de rock progressivo Stormy Six.

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As suas esculturas imateriais serão, acima de tudo, uma reacção às marcas do mundo contemporâneo. “Vivemos num tempo em que a fisicalidade, o estarmos presentes tem sido substituído pela nossa imagem virtual e pela nossa voz, que também é impalpável. A carne e o sangue do nosso ser tem que contar com a ausência, que é por estes dias, a única verdadeira presença”. As declarações foram dadas ao Instituto Cultural Italiano de Nova Iorque. Este sábado, a instituição patrocinou a instalação na cidade americana da terceira escultura imaterial de Salvatore Garau. Exposta frente ao Federal Hall, a poucos passos da Bolsa de Nova Iorque, intitula-se Afrodite Piange (Afrodite chora).

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