Os Laboratórios do Estado só existem em momentos de crise?

Urge proceder à revisão do estatuto da carreira de investigação científica, nos aspetos respeitantes à avaliação do desempenho dos investigadores, às regras de progressão remuneratória. Urge também valorizar os Laboratórios do Estado tendo em atenção a sua especificidade e relevância para a sociedade.

Todos se lembram do sinistro ocorrido na ponte de Entre-os-Rios em 2001, do alarme decorrente da deteção de fendas na Ponte 25 de Abril, da falta de sardinha nas nossas águas e consequente redução da sua pesca, das recorrentes interdições à apanha de bivalves nas zonas costeiras devido a contaminantes ambientais, das catástrofes naturais que assolam todos os anos o nosso país como inundações ou fogos florestais, da Encefalopatia Espongiforme Bovina (BSE) que tanto assustou os consumidores, e do mais recente contributo do Instituto Nacional de Saúde e também do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária no combate à pandemia covid-19. Em todos estes acontecimentos a atuação dos Laboratórios do Estado (LE) foi/é determinante.

Mas os LE são muito mais do que instrumentos em momentos de crise! Os LE desenvolvem continuamente atividades que contribuem para a mitigação de diversos tipos de riscos. Recorde-se a contínua monitorização do estado de conservação de barragens, do estado dos stocks de pescado, da qualidade diária dos moluscos bivalves, do apoio a indústrias como a aquacultura, da previsão meteorológica diária, dos alertas sobre o estado de qualidade do ar e de águas balneares, da vigilância sobre importações e exportações de produtos alimentares e espécies vivas animais e vegetais, proteção de solos, ambiente e monitorização do efeito das alterações climáticas sobre os sistemas agrários, dos planos de vigilância, controlo e erradicação de doenças animais, da vigilância de diversas doenças infeciosas (SIDA, Legionella, Sarampo), da medição de amianto no ar em edifícios públicos e escolas, da composição dos alimentos, do rastreio neonatal de doenças genéticas, entre muitos outros.

O que são os Laboratórios do Estado?

Constituem um dos pilares do Sistema Científico e Tecnológico Nacional, cabendo-lhes um papel fulcral no apoio à definição e implementação de políticas públicas, essenciais para a salvaguarda dos interesses do país, que requerem elevados níveis de isenção, independência e competência. Os LE desenvolvem também importantes ações conducentes a uma efetiva transferência do conhecimento científico e tecnológico para os vários setores da economia e da sociedade e para a prevenção e mitigação dos riscos públicos.

Têm assim, por décadas, sido um forte braço de apoio ao Estado e sucessivos governos. Os portugueses conhecem os contributos prestados diariamente pelos LE, nomeadamente, pelos:

  • INIAV, Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, na melhoria da competitividade nas áreas agroflorestal e da proteção das culturas, da produção e segurança alimentar, da saúde animal e da sanidade vegetal, fundamentais para a salvaguarda da saúde pública;
  • INSA, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, na melhoria da saúde pública, através da observação da saúde e vigilância epidemiológica, de prestação de serviços diferenciados, da avaliação externa da qualidade laboratorial, e da função de Laboratório de Referência na área da saúde;
  • IPMA, Instituto Português do Mar e da Atmosfera, nas áreas da meteorologia, clima, sismologia, geomagnetismo, recursos e riscos naturais, mar, segurança alimentar, pescas e aquacultura;
  • LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, na qualidade e segurança das obras, de pessoas e bens, na proteção e requalificação do património natural e construído e na modernização e inovação tecnológicas no setor da construção;
  • LNEG, Laboratório Nacional de Energia e Geologia, nos recursos energéticos, nas tecnologias renováveis, na eficiência energética para um sistema de energia sustentável e na cartografia geológica básica e temática.

Para que estes serviços sejam prestados à comunidade de forma eficiente os LE precisam de recursos humanos, instalações e equipamentos adequados, e de modelos de gestão adaptados às atividades de investigação desenvolvidas em projetos nacionais e internacionais em que participam.

A crise na carreira de investigação

As atividades de investigação e desenvolvimento fazem parte da missão destas instituições, mas a carreira de investigação tem vindo a ser inexplicavelmente esquecida e desvirtuada, desde 2003. Este corpo, de mais de 600 doutorados, é enquadrado pela carreira de investigação científica (CIC), regulamentada pelo Decreto-Lei 124/99. A revisão do estatuto da CIC, que é da exclusiva iniciativa e competência dos sucessivos governos e que deveria ter ocorrido no seguimento da publicação da Lei n.º 12-A/2008, tal como se verificou com os estatutos das carreiras docentes do ensino superior universitário (com a qual a CIC mantém paralelismo) e politécnico, nunca veio a acontecer. Esta situação determinou a não existência de um processo de avaliação dos investigadores de acordo com aquela lei e a paralisação das progressões na carreira, bem como das alterações de posicionamento remuneratório em cada categoria até ao presente.

Como fator agravante, as entradas para a base da carreira de investigação, bloqueadas por força das medidas restritivas impostas pelos Orçamentos do Estado, levaram à não renovação dos quadros de investigadores e ao seu inevitável envelhecimento, colocando em risco a transferência de conhecimentos (efeito “escola”), únicos e altamente especializados no país. Em alguns casos algumas componentes das missões dos LE foram irremediavelmente perdidas. Apenas recentemente este efeito foi parcialmente mitigado pela contratação de alguns jovens investigadores que se encontravam a exercer funções com vínculos precários. Mesmo assim, à revelia da regulamentação para o efeito, grande parte dos processos ainda não estão concluídos.

Como resultado inevitável deste aparente desprezo pelos investigadores e, consequentemente, pelos LE onde exercem a sua atividade, estão em vias de extinção os investigadores coordenadores (categoria de topo da carreira), o número de investigadores principais (categoria intermédia) é já muito reduzido, e a esmagadora maioria dos investigadores, alguns próximos da aposentação, pertencem à categoria de investigador auxiliar (categoria base de ingresso), os quais permanecem ao longo dos anos exercendo funções que ultrapassam o conteúdo funcional previsto para essa categoria. Por analogia com a carreira docente universitária, a percentagem de investigadores auxiliares deveria ser de 30 a 50%, e não os mais de 85% atuais! Há ainda uma série de responsabilidades institucionais que os LEs não podem assumir por falta das categorias de topo. Acresce que todos os investigadores com menos de 13 anos na categoria permanecem no seu nível remuneratório inicial. Acrescem a estes investigadores, outros doutorados ainda não integrados na CIC. São facilmente compreensíveis a frustração e sentimentos de injustiça e indignação.

Imagine-se o que seria um Governo só com secretários de Estado, um sistema judicial só com juízes de 1.ª instância, um exército só com oficiais inferiores, ou um ensino universitário só com professores auxiliares. É esta a situação da carreira de investigação nos LE – pede-se aos investigadores que funcionem sem o necessário equilíbrio e composição dos seus quadros e sem o adequado reconhecimento pela evolução do trabalho que desenvolvem e das responsabilidades que assumem. É óbvio o reflexo negativo desta lamentável situação no funcionamento dos LE, que só pela dedicação dos seus investigadores, pelo gosto que têm pela sua atividade e pelo seu sentido de responsabilidade no desempenho de funções públicas, conseguem atingir os objetivos da sua missão. Dificilmente tal situação será mantida no futuro. Se nada for feito, nos próximos 2-3 anos as aposentações previstas dos investigadores dos LE irão impossibilitar o cumprimento da sua missão, e escolhas terão de ser feitas, pondo em risco pessoas e bens nas diferentes áreas de intervenção dos LE.

Haverá uma luz ao fundo do túnel?

Neste momento não há! Mas poderão ser dados passos para que ela se acenda. Para tal, urge proceder à revisão do Estatuto da CIC, nos aspetos respeitantes à avaliação do desempenho dos investigadores, às regras de progressão remuneratória, ao restabelecimento do equilíbrio entre as diferentes categorias e à manutenção do paralelismo com a Carreira Docente Universitária e Politécnica onde o equilíbrio entre as categorias já foi restabelecido em 2019. Urge também valorizar os LE tendo em atenção a sua especificidade e relevância para a sociedade, criando condições para a atualização e modernização contínua das suas instalações e equipamentos e para a boa gestão dos recursos humanos e financeiros.

Se nada se fizer, se os responsáveis governativos continuarem a não agir às sucessivas chamadas de atenção, a luz ao fundo do túnel não se acenderá. Quem irá mitigar os riscos naturais, alimentares, ambientais, de saúde e tecnológicos para salvaguardar a segurança dos cidadãos e dos seus bens? Quem suportará as políticas e as respostas/pareceres/decisões em inúmeras áreas governativas, ou a quem irá o Estado recorrer em futuros momentos de crise?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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