Heróis além-fronteiras. Quem são os cidadãos que apoiam causas nobres internacionais?

A Nobre Casa de Cidadania homenageou nove cidadãos que se distinguiram pela sua solidariedade, sentido de sacrifício e dedicação aos outros. Três deles voaram sem medos para fora do país para apoiar sobreviventes de um ciclone, crianças subnutridas e as vítimas de uma explosão. Conheça as suas histórias.

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Imagem de Luciano Souza em Moçambique
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Imagem de Luciano Souza em Moçambique

O apoio incondicional pela família, um bilhete de ida (muitas vezes sem data de volta), uma vontade imensa de correr o mundo a ajudar quem mais precisa. Embora tenham idades e trajectórias diferentes, estas qualidades unem três dos nove cidadãos distinguidos na edição de 2021 da cerimónia de homenagem da Nobre Casa de Cidadania (NCC), que se realizou em formato digital. Joaquim, José Pedro, Rute, Alexandra, Luís Carlos, o casal Isabel e Jorge, Andreia, Luciano e Isabel são os heróis de 2021, sendo que os três últimos foram eleitos pelos seus actos além-fronteiras.

São estes os cidadãos homenageados, mas quem ganha, na verdade, são todas as pessoas que ajudam, que em muitos casos são às centenas ou milhares, neste caso fora do país. Embora não se conheçam entre si, estes nomes partilham qualidades tão nobres que os admiradores da sua solidariedade, quer tenham sido amigos ou conhecedores alheios das suas histórias, os nomearam para esta distinção, que recebeu mais de 70 candidaturas. Eis os relatos dos três heróis que apoiaram (e apoiam) causas internacionais, em Moçambique, Madagáscar e Beirute.

Um ciclone: a urgência de ir

Não são os 76 anos de Luciano Souza, natural do Brasil, que o impedem de ajudar os outros – pelo contrário. “Nunca tive complexos com a idade, e enquanto posso, quero estar neste movimento” diz, referindo-se ao voluntariado. Envolvido em actividades de natureza solidária desde sempre, abdicou do seu trabalho, família e amigos em Portugal para socorrer a comunidade de Búzi, Idai, em Moçambique, após o ciclone de 2019, mantendo desde então o apoio a crianças e adultos daquela região. “No Brasil, eu sempre estive ligado à acção social, à solidariedade, tanto que eduquei os meus filhos assim, e também eles são voluntários” conta. A viver em Portugal há mais de trinta anos, logo que chegou, no final dos anos oitenta, ajudou pessoas em Chaves, “onde chegámos a distribuir 330 litros de leite por mês. A situação económica hoje é melhor, mas há trinta anos não era assim” recorda.

Luciano Souza em Moçambique D.R.
Crianças em Moçambique D.R.
Luciano Souza em Moçambique
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Luciano Souza em Moçambique D.R.

Praticante de ioga e meditação, Luciano estava em Moçambique quando se deu o ciclone, há três anos. Assim que soube da tragédia, tratou de fundar uma associação portuguesa, a “Soul Frater” (que significa alma fraterna em português) a fim de dar apoio voluntário social, educacional e na área da saúde, em países dos PALOP, mas sobretudo aos danos graves provocados pelo ciclone Idai. Com o dinheiro angariado num almoço em Chaves, foi para a cidade dizimada, “sozinho, sem saber nada do que iria encontrar, só que tinham morrido muitas crianças.”

Apesar da sua saúde debilitada, devido a uma dor ciática, e por ter perdido 12kg, teve de voltar a Portugal temporariamente. “Mas vou voltar” diz prontamente. Sobre as saudades da família, não hesita ao dizer que a “mulher e os filhos sempre me apoiaram” e que no Brasil já era assim. “No ano passado, no meu aniversário, a minha filha escreveu-me esta mensagem: ‘Pai, é mais um aniversário que passas sem estar connosco. Mas queremos dizer-te que fiques onde estás, faças o que precisas de fazer, porque nós sabemos que estás feliz e, se estás feliz, também estamos’. Fez-me chorar”, diz, com uma emoção evidente.

Até à data, ajudou a construir cinco casas para cinco famílias vulneráveis e a reabilitar uma escola completa com quatro salas, “porque até hoje as escolas estão todas destruídas”. Distribuem também alimentos onde as ONG’s não vão, e ajudam “cerca de 30 a 40 famílias com crianças órfãs ou com HIV.” Neste momento, tem um projecto de um orfanato feito por uma amiga arquitecta, que está a aguardar apoio financeiro para se concretizar. “Eu preciso de ajuda”, apela Luciano, que ambiciona fazer salas de estudo, e casas para crianças e para as mães sociais, que no total se destinam a albergar 170 crianças.

Um apelo internacional, um coração do tamanho do mundo

Isabel Ferreiro Fraga, 39 anos, professora, largou o emprego para se juntar à ONG “Fraternidade Sem Fronteiras” em Madagáscar, apoiando a população em situações frágeis e contribuindo para a melhoria de vida das mesmas. “A acção solidária sempre fez parte da minha vida” afirma. “Juntei-me em 2017 a esta ONG, fui para Madagáscar em 2018 e regressei no ano seguinte” diz Isabel, que conheceu o projecto através de uma grande reportagem que viu na televisão. “Precisavam de alguém para orientar as actividades ligadas à educação.” Na altura estava a dar aulas em Portugal, mas despediu-se, e comprou um bilhete de ida e volta por seis meses. Não conhecia ninguém.

Isabel Ferreiro Fraga em Madagáscar
Crianças em Madagáscar
Isabel Ferreiro Fraga em Madagáscar
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Isabel Ferreiro Fraga em Madagáscar

Na altura, o que a impressionou mais foram as crianças desnutridas do Sul de Madagáscar, onde a ONG opera, apontando um caso de uma criança, a Núria, que com 9 anos pesava 10 kg. “Um dos trabalhos mais importantes é o de um Centro Nutricional criado pela médica voluntária Janaíne Camargo, que tive o privilégio de conhecer no período em que estive lá. Atendem imensas crianças desnutridas, dando-lhes leite com fórmula específica para tratamento da desnutrição, com ferro. Esse número tem vindo a aumentar, infelizmente, devido à pandemia covid-19” desabafa a professora.

Na altura em que Isabel lá esteve, houve também uma epidemia de sarampo, que assolou o país e causou a morte a muitas pessoas. “Sem a presença da Fraternidade sem Fronteiras lá, acredito que teriam morrido muito mais crianças com sarampo, uma doença que infelizmente ainda existe nesse país e que pode ser fatal, pela falta de assistência e recursos hospitalares.” Sabe que foi a irmã que a nomeou para a distinção da Nobre Casa da Cidadania. “Fiquei bastante surpreendida com esta distinção” diz Isabel, que ambiciona voltar em breve a Madagáscar. Sempre para ajudar.

Mudar vidas em 24h, para sempre

Andreia Santos Castro, 35 anos, médica especialista em Medicina Geral e Familiar, Urgência e Consulta do Viajante Online, fala-nos desde a Guiné Equatorial. Mas, em inícios de Agosto do ano passado, estava em Beirute, no Líbano, onde aterrou, sem planos, precisamente 4 dias depois das explosões que provocaram mortes, feridos e danos extensos nesta capital. “Faz parte da nossa formação estarmos disponíveis para ajudar o próximo. E o que aconteceu em Beirute não deixou ninguém indiferente” começa por dizer. “A explosão de Beirute provocou imensos ferimentos devido aos estilhaços, ou seja, eram feridas que necessitavam de ser suturadas muito rapidamente. E isso era uma coisa que eu sabia que podia fazer” afirma, sobre o dia em que viu as notícias da explosão.

Andreia Santos Castro (à direita) no Líbano D.R.
Andreia Santos Castro no Líbano ,
Recolha de medicamentos e material hospitalar no âmbito do projecto "Ajudar Beirute"
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Andreia Santos Castro (à direita) no Líbano D.R.

“A explosão aconteceu numa terça-feira à noite. No dia seguinte, hora após hora, a televisão mostrava imagens da explosão. Tinha um contacto de um fotojornalista que estava no Líbano, e ele disse-me que a situação era pior do que estava a passar na televisão.” Aterrou em Beirute três dias depois, levando consigo uma caixa cheia de donativos com equipamento médico. “Dirigi-me às ambulâncias, e comecei de imediato a colaborar com a Cruz Vermelha libanesa, ajudei a fazer transportes e suturas.” Em simultâneo, e nas redes sociais, fez uma angariação de donativos, e numa semana conseguiu recolher oito mil euros. 

De volta a Portugal, e com grande parte do dinheiro por aplicar, criou o grupo solidário “Ajudar Beirute”. “A partir daí, começámos a encaminhar e-mails para instituições, e as pessoas começaram elas próprias a enviar-me caixotes com donativos, de todos os pontos do país.” Até que a associação “Romã Azul” se disponibilizou a pagar-lhe um contentor para enviar à capital do Líbano. “Só tinha que me preocupar em enchê-lo. Recolhemos o máximo de donativos, aplicámos o dinheiro angariado (que, entretanto, duplicou), e comprámos o maior número de bens para enviar para Beirute”.

Andreia voltou ao Líbano um mês depois da explosão, com um grupo de cinco voluntários. “Levámos cerca de 100 quilos em medicamentos e material hospitalar. Tudo isto foi gerido dentro da minha sala de estar” recorda a médica, que acabou por atingir, com o grupo, 250 mil euros em donativos no total. “Voltei uma terceira vez para levar 3 mil quilos num avião da HiFly, da fundação Mirpuri, que disponibilizou um avião” acrescenta. Depois, veio a saber “que me nomearam alguns elementos do grupo voluntário para este reconhecimento a nível nacional. Foi tudo uma surpresa!”, afirma, ainda surpreendida, sobre a distinção da Nobre Casa da Cidadania.

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