Somos muitas, mas quem nos protege?

O #metoo chegou a Portugal, mas ainda nos sentimos desamparadas. Não há nenhuma associação especializada em violência sexual contra mulheres. Há falta de apoio jurídico especializado, orientação e estudos.

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Lucia/Unsplash

É bastante importante, e também doloroso, verificar o gradual aumento das denúncias de assédio sexual que temos visto nas últimas semanas em Portugal. Em uma sociedade ainda muito pouco preparada para acolher vítimas de crimes de violência sexual, a coragem tem falado mais alto.

Por isso, e como forma de dar ainda mais força a esta maré que não pode parar, queremos dizer que não apenas estamos aqui e também passamos por isso, como ao longo do tempo, temos tirado algumas lições e aprendizados da nossa vivência no Brasil, que pensamos poder fazer algum sentido serem partilhados.

Em primeiro e mais importante lugar: estamos juntas, somos muitas e não vamos mais nos calar. É por meio de uma corrente de relatos de violências e apoio coletivo, principalmente entre mulheres, que alcançaremos alguma justiça neste campo. Quanto mais coesas formos, mais unidas e mais confiarmos umas nas outras, mais força teremos para enfrentar a dificílima tarefa de fazer uma denúncia ou de apenas contar o trauma causado por uma violência sexual. Porque o escrutínio, o escárnio e a imediata reação pública são sempre terríveis e nos levam novamente para o lugar de calar, da vergonha e da ideia de impunidade absoluta. Que geralmente é o que acontece na prática.

Em segundo lugar, é preciso nos institucionalizarmos cada vez mais. O Me Too Brasil nasceu em agosto de 2020 como um movimento organizado, inspirado no #metoo dos Estados Unidos, que por sua vez recebeu este nome cunhado por Tarana Burke, como um movimento contra o assédio sexual no trabalho e, principalmente, para amplificar a voz das vítimas e prestar acolhimento.

Nosso lançamento foi coordenado com a denúncia de 16 mulheres contra o produtor de cinema brasileiro e curador de festivais internacionais Gustavo Beck. Todas o acusavam de abuso e assédio sexual no trabalho. Contamos com apoio de diversas profissionais do audiovisual que nos sustentaram com dados e iniciativas de divulgação do projeto.

No Brasil, o Me Too oferece apoio jurídico, psicológico, social e médico a pessoas vítimas de violência sexual em qualquer situação. Todo o processo de acolhimento e orientação é gratuito e pode ser acessado pelo site metoobrasil.org.br. O atendimento é feito pela rede de voluntárias do Projeto Justiceiras. Foi, por exemplo, por meio do atendimento do Projeto Justiceiras que foi aberta investigação para apurar a rede de aliciamento de meninas e mulheres do senhor Saul Klein, herdeiro da principal rede de lojas do país.

Além disso, o Me Too Brasil produz e divulga conhecimento com o objetivo de incidir na opinião pública, isto é, contribuir para a transformação cultural que garanta o correto posicionamento de responsabilidades: a culpa nunca é da vítima, mas sempre e apenas de quem escolhe cometer a violência. O Me Too Brasil se encaminha para formalização de suas atividades por meio da criação de uma Organização da Sociedade Civil.

Temos visto a repercussão do feminismo jurídico no Brasil na criação de Projetos de Lei para criminalização de violência institucional contra vítimas de violência sexuais cometidas por autoridades de investigação e julgamento desses crimes, bem como para proibir que a vítima seja questionada sobre sua vida pregressa, por exemplo, quando em investigações de crimes de violência sexual.

Mais do que um movimento, sentimos a necessidade de nos institucionalizarmos, juntando forças para o complexo trabalho de oferecer apoio emocional, institucional e técnico para uma mulher vítima de abuso e assédio. Também, como forma de juntar capital qualitativo e quantitativo, que nos muna de poder de luta numa arena ainda tão cruel e injusta com as mulheres.

Obviamente que cabe a cada mulher escolher se e como denunciar, com nomes dos agressores ou sem nomes, com detalhes ou não, numa rede de TV ou apenas numa linha de apoio telefônico. Mas o importante é criarmos um ambiente seguro e responsável que não apenas estimule a quebra do silêncio, como também consiga levar adiante o debate, não apenas pensando nas leis que precisam ser criadas, como na educação, que necessita incluir este tema no espectro de aprendizagem da juventude, para que possam compreender de fato que vivemos em uma sociedade que sempre permitiu comportamentos que não mais toleraremos. E que são, e esperamos que sejam cada vez mais, punidos.

Um último ponto, mas não menos fundamental neste debate, é que pensemos que para cada mulher com fama e poder que pode fazer a denúncia porque não mais depende de um homem para trabalhar, por exemplo, são milhares as que ainda vivem sob coerção e medo devido à sua situação social, racial e de fragilidade laboral. Estas mulheres existem e precisam entrar na equação, porque o problema não estará resolvido até que a última mulher possa ter o total controle do seu corpo, vida e escolhas.

Na área do cinema e audiovisual, por exemplo, é imprescindível que as produtoras, distribuidoras e demais entidades do setor se adequem internamente para coibir comportamentos de abuso e isso pode ser feito com a criação de normas internas que explicitem tolerância zero ao assédio, com canal de escuta adequado para tratamento dos relatos de violência, com a devida responsabilização do agressor, e, claro, com recorrente formação educacional a todos os profissionais. Isto pode ser feito também em qualquer outro setor profissional. A mudança cultural é urgente e é apenas com ela que mulheres serão protegidas.

Como dizemos por aí, o mundo não está se tornando um lugar difícil para os homens, está se tornando um lugar difícil para os predadores sexuais. E estaremos aqui para que esta frase seja cada vez mais verdade.

Fernanda Polacow é cineasta e guionista indicada aos prémios Sophia 2021, é brasileira e vive em Portugal
Isabela del Monde é advogada e coordenadora do @brasilmetoo

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