Juntas médicas

Só quando saiu para o exterior do edifício compreendeu o estranho sítio donde tinha acabado de sair: um sítio em que quem devia cuidar trata de papeis e quem só ali está para tratar de papeis é quem afinal cuida.

Entra no edifício. É grande, corredores à esquerda e à direita. Pergunta a um segurança onde são as juntas médicas. No 1.º andar. Vai de elevador? Prefere subir as escadas, nota de repente os passos devagar, a cabeça está acelerada e as pernas lentas. Sente o corrimão, é frio. Depois lembra-se do vírus que por todo o lado paira e retira a mão. Não é por causa dele que cá vem, é só porque já não pode aguentar mais o assédio no trabalho a troco de salários mínimos em atraso e o seu médico, compreensivo, passou-lhe uma baixa. Mas a entidade patronal, eficiente e profissional, desconfiou dela, desconfiou do médico, e fez uma denúncia à segurança social. E agora leva numa mão trémula a convocatória para a junta médica, a outra regressou ao corrimão – que o covid afinal é coisa pouca à beira do que lhe faz tremer a alma.

Entra na sala. Três senhores sentados a uma secretária olham-na com a brevidade do relance. Algumas perguntas rápidas, dessas que comprovam que não somos etéreos, que temos data de nascimento, que moramos numa rua, que temos médico de família. O relatório do médico, perguntam. Qual relatório, inquieta-se ela, sabendo que há sempre um papel que falta. Então a senhora não traz o relatório, ironizam. É natural, tem um ar saudável, acrescentam. Se não tem relatório do médico e está com esse ar não pode estar doente, sentenciam. Mas não sabem que ar tem, porque apenas olham o monitor do computador. Pode sair, dizem. Tem de regressar ao trabalho, não está doente, acrescentam. É que, na sua sapiência, olhando o computador, olhando-a de soslaio por detrás das suas secretárias sábias, declaram cientificamente que não está doente.

Sai da sala, a mão que ainda há não mais de dez minutos subia o corrimão tateia agora o lenço no bolso do casaco. Percorre um corredor, há um átrio e uma senhora em frente a um computador. Ali tudo é em frente a computadores. É a mesma que lhe indicou onde era a sala dos senhores doutores que fazem as juntas médicas. O que tenho de fazer agora, perguntou. A senhora viu-lhe o lenço na mão, viu-lhe as lágrimas nos olhos e o lenço já nos olhos, e disse-lhe o que teria de fazer. Saiu de trás do computador, olhou-a de frente, sorriu através da máscara. Sorriu do mesmo sorriso com que se habituara a apaziguar as dores diárias que por ali passavam a caminho das doutas certificações. Ela sentiu-se finalmente perante uma pessoa de carne e osso e chorou mais. Chorou então tudo, demorou nisso mais tempo do que tinha demorado perante o triunvirato médico. Saiu para o exterior do edifício e, já em pleno contacto com o ar que nos faz renascer todos os dias, compreendeu o estranho sítio donde tinha acabado de sair: um sítio em que quem devia cuidar trata de papeis e quem só ali está para tratar de papeis é quem afinal cuida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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