Alinhar lucro e valor: o desafio da empresa do século XXI

Sem respeito por elevados padrões éticos e de profissionalismo e sem a consideração, pelos gestores, de interesses coletivos a par com o interesse ao lucro, o risco de novas crises de grande dimensão é grande e o sucesso de longo prazo, individual e coletivo, ficarão comprometidos.

Volvidas três décadas sobre a criação da CMVM, assistimos a uma importante transformação na perspetiva como olhamos para a natureza e a função da empresa na sociedade. Esse movimento tornou mais evidente que, para reafirmar o seu estatuto social de polo agregador de riqueza e valor, a empresa terá de abandonar lógicas de curto prazo limitadas pelo objetivo único de maximizar o lucro para os acionistas e assumir todo o ecossistema na qual se insere como o destinatário da sua atuação.

A tendência antecede a pandemia, mas não lhe é imune. O último ano revelou desigualdades e fragilidades económicas e sociais, globais e nacionais, evidenciou a fragilidade do indivíduo e realçou a força, importância e inevitabilidade para a sua sobrevivência das suas interligações, tanto ao nível local (o indivíduo como elemento de uma família ou comunidade) como nacional e global. Há hoje, por isso, uma crescente consciência de que se não agirmos em consonância com o ambiente que nos rodeia, e não promovermos o equilíbrio entre competição e concorrência, estaremos condenados a piores resultados e, no limite, à incapacidade de resolver crises, garantir o bem estar e a estabilidade económica, social e política.

Neste contexto é inevitável uma reflexão aprofundada e alargada sobre os benefícios e limitações do nosso modelo de organização económica e, em particular, sobre o papel da empresa, dos seus impactos na sociedade e, em consequência, dos pressupostos que devem condicionar a sua atividade.

Esta é uma reflexão fundamental para o sucesso da própria empresa no século XXI. É, por exemplo, preocupante a erosão da confiança dos cidadãos nas empresas, evidenciada pela redução do número de entidades cotadas e de investidores a financiarem empresas em mercado, bem como por um processo gradual, mas acentuado nos últimos anos, de perda de talento pelas empresas e de diluição do sentimento coletivo, de grupo, ligação, fidelidade e pertença dos seus trabalhadores, especialmente nas gerações mais novas. Não podemos igualmente ignorar que a poupança das famílias, apesar do crescimento registado em resultado do confinamento geral e prolongado determinado pela crise pandémica, continuou a ser canalizada sobretudo para depósitos, que respondem ao objetivo de neutralização do risco das aplicações e das empresas, mas não ao objetivo de rentabilidade e de geração de riqueza produtiva.

Neste contexto, a conceção tradicional, sedimentada essencialmente na compreensão da empresa como uma entidade com capacidade ilimitada e tendo a exclusiva função de potenciar os resultados da exploração de determinada atividade económica e recursos, com vista à repartição dos resultados pelos seus acionistas, parece, perante os dilemas e exigências que a empresa e a sociedade hoje enfrentam, demasiado limitada e posta em crise.

São, pois, necessárias respostas àquilo que prefigura uma crise da empresa enquanto entidade de atuação coletiva para a criação de riqueza e confiança, pilar central do desenvolvimento económico e fator chave para o estabelecimento de condições de desenvolvimento económico, incluindo a alocação eficiente de capital e a promoção da inovação, da produtividade e das relações comerciais.

Essas respostas para a recuperação da confiança da comunidade na empresa passam necessariamente pela construção de um conceito de empresa assente em considerações de bom governo, sustentabilidade e propósito. Cada vez mais, no contexto presente e de forma marcadamente acentuada pela crise pandémica, o sucesso é medido pela criação de valor a longo prazo, pela luta contra a corrupção, pela idoneidade e a ética dos gestores, pela conduta empresarial responsável nas cadeias de valor.

A contínua exploração dos recursos naturais e das matérias-primas necessárias para uma determinada atividade económica, e os efeitos colaterais adversos do processo produtivo, têm vindo a tornar evidente a insustentabilidade do pressuposto das ilimitadas capacidades reprodutivas, em que aquela perspetiva assentava, ao mesmo tempo que se desenvolve e manifesta uma nova consciência em torno da necessidade de preservação dos bens coletivos, da própria sociedade e do planeta.

A juntar-se à urgência climática emerge assim a questão social como fator determinante na definição do novo conceito da empresa cuja atuação em matéria de sustentabilidade não se pode limitar à questão ambiental, importando um escrutínio mais intenso e denúncias mais frequentes de modelos de negócio aparentemente sustentáveis que escondem situações de desrespeito pelos mais elementares direitos humanos e condições laborais e sociais. 

Todas estas realidades em mutação confluem, inevitavelmente, na progressiva construção de um conceito renovado de empresa, que se distancia progressivamente do paradigma assente num objetivo único e final de criação e distribuição de lucros pelos acionistas (shareholder capitalism), ensaiando uma tendência de aproximação, necessariamente cautelosa mas progressiva, a um modelo de empresa que abrange na sua finalidade, além do lucro, a criação de valor para outros grupos de interesses que gravitam em torno da sociedade ou que se lhe impõem, enquanto interesses públicos ou supra-individuais, vocacionando a empresa para a realização de um propósito (stakeholder capitalism).

Uma das vias mais eficazes de transformação social e económica assenta no reforço das estruturas e mecanismos de bom governo, criadores de valor para a empresa e de um efetivo compromisso com o bem comum. E é por isso que temas tão clássicos como a relevância e responsabilização da função de fiscalização, a diversidade (em sentido amplo) nos órgãos de administração, as políticas e práticas remuneratórias, a qualidade de informação prestada ao mercado ou o envolvimento dos investidores na dinâmica das empresas ganham, no contexto atual, uma importância e relevo acrescidos, sob o impulso inexorável da agenda da sustentabilidade, do foco em objetivos de longo prazo e da consideração de outros grupos de interesses na definição das políticas e objetivos de gestão das grandes empresas.

À medida que o conceito clássico de empresa é desafiado, também o contributo dos reguladores e supervisores deve ser questionado. Desde logo, refletindo sobre as suas próprias responsabilidades e desafios. Esta é, de resto, uma preocupação permanente da CMVM, e que, recentemente traduzida, entre outras dimensões e a propósito da celebração dos 20 anos do Código dos Valores Mobiliários e dos 30 anos da CMVM, na publicação de um volume que juntou contributos de mais de 40 peritos sobre a história, tendências emergentes e o futuro dos mercados de capitais. Depois, reguladores e supervisores devem ter bem presente que o complexo normativo europeu tem vindo a reforçar as competências que lhes permitem avaliar e agir, direta ou indiretamente, na cultura, eficácia, idoneidade e integridade dos conselhos de administração. Compete-nos, portanto, usá-las com a mesma determinação e ponderação com que também o temos vindo a fazer na CMVM. Sem respeito por elevados padrões éticos e de profissionalismo e sem a consideração, pelos gestores, de interesses coletivos a par com o interesse ao lucro, o risco de novas crises de grande dimensão é grande e o sucesso de longo prazo, individual e coletivo, ficarão comprometidos.

Cabe, portanto, às empresas um papel essencial na construção de um sistema financeiro sustentável, perseguindo a criação de lucro e de valor no longo prazo, um objetivo a assumir sem voluntarismos, mas também sem hesitações. Nesse caminho encontrarão o apoio e o empenho da CMVM para a reconstrução de uma economia e um mercado dinâmicos e sustentáveis, ao serviço do bem-estar coletivo de longo prazo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 1 comentários