Odemira, um caso de escravatura moderna

Nós, consumidores e cidadãos, temos um papel fundamental em reportar casos de escravatura humana nas nossas comunidades, empresas e sectores de trabalho. Somos todos cúmplices deste crime através das nossas escolhas, compras, uso de serviços e investimentos.

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Jose Fernandes

Apesar de a escravatura moderna ser um problema (um pouco irónico) dos nossos tempos, e de estar a provocar muito espanto na sociedade portuguesa, a sua existência no país não é de agora, como nos tem mostrado o caso de Odemira.

A escravatura moderna consiste numa das mais graves formas de exploração humana, incluindo trabalho e casamento forçados e tráfico de pessoas. Estima-se que em 2016 existissem 40,3 milhões de vítimas de escravatura moderna, das quais 62% eram vítimas de trabalho forçado. Só em Portugal seriam 26.000 pessoas — a capacidade máxima do Estádio do Restelo.

Não repetir os erros do passado

Portugal foi o primeiro país do mundo a vender seres humanos para fins de trabalho forçado, corria o ano de 1444. E para além de deter também o recorde de pessoas vendidas, demorou 66 anos a abolir a escravatura histórica em todo o seu território (1858), depois de países como a Dinamarca (1792), Reino Unido (1833) e Espanha (1837) já o terem feito. Hoje, apesar de legalmente Portugal proibir a escravatura — em conformidade com o Artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 48/95 do Código Penal —, a sociedade portuguesa continua a tolerar a existência de trabalho forçado, principalmente aquele que afecta trabalhadores imigrantes.

E quando dizemos sociedade, dizemos todos nós: eu, o leitor e a pessoa que olha para o lado. Em 2015, o Reino Unido adoptou a Lei da Escravatura Moderna para reforçar o combate ao trabalho forçado através de maior transparência nas cadeias de produção — quanto mais tempo demorará Portugal a reconhecer a responsabilidade das empresas em combater o risco de escravatura moderna, e a absoluta importância e urgência da transparência nas suas cadeias de produção?

De que precisamos?

Portugal tem feito grande progresso em termos de sustentabilidade ambiental através da aposta em energias renováveis. Iniciativas como a Central Solar Fotovoltaica de Amareleja contribuíram para que, entre Janeiro e Julho de 2020, a produção de energias renováveis suprisse 60% da necessidade energética portuguesa. Mais a Oeste, em Odemira, as discussões sobre a sustentabilidade ambiental continuam, desta vez focadas em estufas de agricultura intensiva.

Contudo, é tempo de perceber que sustentabilidade não é apenas uma questão ambiental – e, falando concretamente das estufas, importa também quem as trabalha. Uma economia sustentável não pode depender de exploração humana se o trabalho é precário, perigoso e humilhante. O capital humano é aquele que trabalha nos projectos que levam longe a ambição de Portugal de se tornar líder na sustentabilidade ambiental e 100% dependente de energia renovável, atingindo metas de zero emissões de dióxido de carbono. Mas se sacrificamos um à custa do outro, voltamos à estaca zero.

Abordar e mitigar factores de risco

A situação em Odemira mostrou, mais uma vez, quem é o grupo mais vulnerável da escravatura moderna em Portugal, que formas assume e o quanto há ainda por fazer. Trabalhadores imigrantes, que são traficados (não tenhamos medo de usar a palavra) para Portugal ou que chegam por sua própria escolha, acabam por ser defraudados e ficar presos em situações de trabalho escravo, onde não ganham um salário justo nem aceitável de acordo com o limite legal. Não têm direito a descanso, a seguro de trabalho, de saúde ou sequer a um contrato de trabalho. Também sabemos que existem sectores em que o risco deste tipo de exploração humana é muito mais elevado, como os sectores agrícola, energético e hospitaleiro.

A nível internacional, Portugal nunca ratificou a Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. A nível nacional, não existem leis que proíbam o pagamento de taxas de recrutamento pelo trabalhador, sendo que este é um grande factor para exploração laboral.

O que podemos fazer?

Utilizando a abordagem dos 4 Ps — Protecção, Penalização, Prevenção e Parcerias — eis o que podemos todos fazer para que casos como Odemira não sejam mais notícia em Portugal: o Governo português deve apostar em legislação para travar as formas mais graves de escravatura moderna, especialmente aquelas que acontecem no contexto laboral e afectam grupos mais vulneráveis da nossa sociedade.

Deve também apostar em políticas públicas que promovam maior transparência empresarial e mais responsabilidade pelas condições de trabalho em cadeias de produção, com penalizações significativas para empresas que sacrificam a sustentabilidade social em prol de um lucro mais elevado.

As empresas devem aplicar e assegurar um standard de direitos humanos e laborais para todos os colaboradores, temporários ou permanentes, em todas as suas operações e cadeia de valor. Adicionalmente, necessitam de fazer esforços activos para identificar, remediar e prevenir violações de direitos humanos como seu dever e responsabilidade, como ditam os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU.

Nós, consumidores e cidadãos, temos um papel fundamental em reportar casos de escravatura humana nas nossas comunidades, empresas e sectores de trabalho. Somos todos cúmplices deste crime através das nossas escolhas, compras, uso de serviços e investimentos. Uma instância de exploração numa parte da cadeia de valor, na produção de um bem, pode contaminar a cadeia inteira, chegando aos produtos que vemos nas prateleiras dos nossos supermercados, na energia que nos chega a casa, e roupas que encomendamos online.

Um consumo mais responsável, baseado em critérios de transparência e absoluto respeito pelo outro [ser humano], prestando atenção ao que se passa à nossa volta e denunciando casos concretos, pode pouco a pouco, combater esta pandemia invisível.

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