A valorização da ciência merece ser uma certeza

Será que nos Censos 2031 já vamos poder clicar na opção “Cientista” ou “Comunicador de Ciência”? Sairemos desta pandemia com um plano claro e sólido para a ciência portuguesa? Com uma estratégia que permita que esta valorização realmente aconteça?

Há uns dias, ao preencher os Censos 2021 apercebemo-nos de que as opções “cientista” ou “investigador” não constavam na lista de profissões. Outras faltarão, aliás “comunicador de ciência” também não aparecia. Serão estas ausências indicadoras de que as bases de dados estão incompletas? Ou reveladoras de um país que não reconhece o valor da ciência e dos seus profissionais? Para a primeira opção, a solução passa por uma atualização. No caso da segunda, a solução exige uma estratégia.

Por definição, os cientistas fazem ciência. Já os comunicadores de ciência, comunicam-na. Mas, juntos conseguem bem mais do que a soma das partes: conseguem gerar e trazer o conhecimento científico até onde ele pertence, isto é, para junto da sociedade. Esta sinergia é notória no contexto da pandemia atual. Cientistas procuram soluções, entre elas o desenvolvimento das vacinas contra a covid-19 que para se tornarem numa peça chave no controlo da pandemia dependem de uma forte adesão da sociedade. É aqui que entram os comunicadores de ciência, que desenham e implementam estratégias com vista ao esclarecimento e envolvimento do público relativamente à vacinação.

Foi por acreditarmos na força desta colaboração que no passado mês de Abril, por altura da Semana Europeia da Vacinação, levámos a cabo a campanha “Conversas com Cientistas – Décadas de Ciência para Dias de Vacinas”, numa colaboração com a COLife, uma aliança de seis institutos de investigação em ciências da vida, a Sociedade Portuguesa de Imunologia e a Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica. Em poucos dias esta campanha conseguiu mobilizar 121 cientistas, afiliados a duas dezenas de instituições científicas portuguesas. Juntos e, ao longo de dez dias, dinamizamos cerca de 400 conversas com diferentes públicos, distribuídos de norte a sul do país, passando pelas ilhas, com direito a umas viagens digitais até Timor Leste e São Tomé e Príncipe.

 A nossa campanha permitiu que conversássemos com mais de 10.000 pessoas, na sua grande maioria jovens, mas também adultos. Partindo das suas dúvidas – “Como foi possível produzir tão rapidamente as vacinas contra a covid-19? São seguras? E eficazes?” – e da hesitação – “Devo ou não receber a vacina?” – foi possível falar de temas tão intimamente ligados à ciência como o processo científico (a forma como o conhecimento científico é construído), ou as diferenças entre a ciência aplicada (aquela que procura soluções para problemas) e a ciência fundamental (aquela que procura produzir conhecimento, pelo conhecimento, sem que este resulte necessariamente numa aplicação imediata).

Para avaliar o impacto desta campanha, recorremos a diferentes ferramentas. Durante as sessões, perguntámos ao público quão hesitante se sentia em relação à toma da vacina, e verificámos que após a visualização de um vídeo, no qual descrevemos o longo percurso de descobertas científicas conducentes às vacinas contra a covid-19, o nível de hesitação diminuía. Após as sessões, enviámos um inquérito online ao qual responderam 2732 participantes. Destes, mais de 90% afirmaram ter obtido respostas às suas dúvidas.

Entre os dados recolhidos, há um particularmente animador – cerca de dois terços dos inquiridos afirmaram que, durante a conversa, pôde confirmar ou passou a reconhecer a importância da ciência fundamental na descoberta de soluções para tratar ou prevenir doenças, como é o caso das vacinas contra a covid-19. Este resultado faz-nos crer que a nossa campanha contribuiu para uma melhor compreensão sobre como a ciência funciona e qual o retorno que pode trazer à sociedade. Em suma, estes dados evidenciam a importância da comunicação direta entre a comunidade científica e a sociedade e revelam o interesse de ambas as partes nesse diálogo. Acreditamos que tanto a ciência como a sociedade saem valorizadas desta partilha.

Esta campanha não foi a primeira, nem será com certeza, a última vez que a comunidade científica portuguesa se mobiliza para questões relacionadas com a pandemia. Para darem resposta a muitos dos desafios impostos pela pandemia, cientistas e comunicadores desdobram-se e redirecionam o seu conhecimento científico. Desenvolvem testes, vacinas e modelos computacionais, escrevem, conversam, contribuindo assim para uma sociedade mais capaz de navegar num mundo onde as incertezas ganharam uma outra dimensão.

No entanto, serão estes contributos suficientes para que a ciência e a sua comunidade saiam mais valorizadas desta pandemia? Para muitos parece inegável a importância da ciência e a sua capacidade de resposta, como são exemplo as vacinas contra a covid-19, mas estará algo realmente a mudar no reconhecimento e na valorização da ciência em Portugal? Será que nos Censos 2031 vamos poder clicar na opção “Cientista” ou “Comunicador de Ciência”? Sairemos desta pandemia com um plano claro e sólido para a ciência portuguesa? Com uma estratégia que permita que esta valorização realmente aconteça?

A investigação científica é um processo longo, cheio de incertezas, que necessita de um apoio contínuo e de uma aposta que promova a diversidade, absolutamente essencial tanto para as descobertas verdadeiramente novas como para a consolidação de conhecimento. Mecanismos como os concursos públicos para projetos em todos os domínios científicos, que constituem a principal fonte de financiamento competitivo para quem faz investigação fundamental nas mais diversas áreas, não podem corresponder a uma nota de rodapé no Orçamento do Estado. Nunca antes a necessidade de conhecimento científico acumulado foi tão evidente. Nunca antes o retorno do investimento na ciência foi tão claro. Décadas de investimento na ciência fundamental permitiram que em apenas um ano os cientistas dessem respostas concretas à sociedade. Décadas de investigação para dias de vacinas.

 Na ausência de uma estratégia e investimento sério e sustentado, continuaremos a assistir à crescente fragilização do nosso tecido científico. E esta deterioração tem vindo a ser exposta pela comunidade científica através de artigos de opinião, cartas abertas, manifestos, petições, assim como em conversas com representantes de diferentes partidos políticos, com o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e com o Presidente da República. É preciso apostar no diálogo com repercussões, a partir do qual seja delineada uma estratégia concreta, ambiciosa e sustentável.

 Por tudo isto lançamos um repto aos nossos governantes para que se comprometam a que o investimento na ciência chegue aos 3% do PIB, um objetivo há anos programado e longe de ter sido alcançado. Vemos no diálogo entre a comunidade científica e os nossos governantes, a única forma para ser traçado um plano estruturante, capaz de garantir uma valorização efetiva da ciência, que se quer forte e virada para os desafios futuros.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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