Um Ramadão em Lisboa
Se o islão é um denominador comum a todas as populações muçulmanas, existem várias maneiras de o celebrar e muitas são marcadas por diferentes projectos pessoais e colectivos. Isso mesmo mostra o filme Um Ramadão em Lisboa, que co-realizámos em 2018 e que a RTP2 exibe nesta quarta-feira, pelas 20h30.
O Eid al-Fitr, a festividade que assinala o fim do mês de Ramadão, irá celebrar-se, ao que tudo indica, a 12 de Maio – na véspera de outra celebração que levará, este ano, alguns milhares de pessoas a Fátima. Serão também alguns milhares a festejar o fim do mês de jejum ritual em Portugal. Este ano, os constrangimentos serão diferentes dos vividos no Ramadão passado, no início da pandemia, quando a surpresa e o medo inviabilizaram um momento que é, sobretudo, congregacional. Ainda com limitações quanto ao número de pessoas que podem participar presencialmente nas orações, as mesquitas adaptaram-se para acolher os seus crentes. Em muitos casos, as redes sociais, que já eram utilizadas, tornaram-se indispensáveis para passar as mensagens – muitas delas apelando à esperança, à resiliência e ao sentido de comunidade (Umma) – e para trazer a familiaridade possível a uma experiência que ficou, também ela, fragmentada do ponto de vista social.
Para sinalizar a data, a RTP2 irá exibir – precisamente a 12 de Maio – o filme Um Ramadão em Lisboa, que co-realizámos com Amaya Sumpsi, Catarina Alves Costa, Carlos Lima e Teresa Costa, e que resulta da pesquisa e realização colectiva de um grupo de antropólogas/os ligadas/os ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). Filmado em 2018, muito longe de qualquer vislumbre pandémico, o filme revela o ambiente do mês do Ramadão em vários momentos, desde o seu começo, cheio de entusiasmo e frenesim, ao cansaço dos últimos dias. Num contexto onde o jejum ritual não é uma prática comum nem maioritária, este documentário acompanha as personagens nas suas ruas, nas suas paisagens e nos seus mundos.
No filme, as vivências das celebrações ligadas ao mês do Ramadão (nono mês do calendário islâmico, assinalado através da prática do jejum do nascer ao pôr do Sol), são protagonizadas por muçulmanos e muçulmanas residentes em Lisboa e seus arredores, propondo-se retratar a diversidade cultural da cidade e dos seus habitantes. Entre refugiados, migrantes de várias origens, ou portugueses de confissão muçulmana, o filme realça a forma como se vive a experiência do jejum em Portugal. A partilha faz-se sentir a vários níveis, nos momentos mais ritualísticos da oração e da recitação do Alcorão mas, também, na limpeza das mesquitas, na entrega de cabazes alimentares aos mais pobres e nas refeições cuidadosamente confeccionadas para marcar o início e o fim de cada dia.
Partindo da prática antropológica, acreditamos que o filme permite um olhar menos estereotipado sobre os muçulmanos, um exercício que consideramos essencial numa conjuntura onde proliferam discursos cada vez mais radicalizados face às populações muçulmanas. Na realidade, se o Islão é um denominador comum a todas elas, existem várias maneiras de o celebrar e muitas são marcadas por diferentes projectos pessoais e colectivos. Por essa razão, convidamos os espectadores a adentrarem-se nas memórias de infância dos personagens, nos instantes de introspecção e de cansaço, nas práticas envolvidas na confecção das refeições, na circulação pela cidade em função de obrigações laborais e familiares e, finalmente, na produção de “lugares” que possam oferecer algum conforto. De facto, é preciso observar essas vivências para entender que os muçulmanos inscrevem as suas práticas religiosas num sentido comunitário que extravasa a Umma, a comunidade dos crentes. No filme, convocam os não-muçulmanos – e, neste caso, a equipa que o realizou – para compreender melhor as suas práticas, numa lógica que acreditam ser humanista e apaziguadora. Apesar de todas as condicionantes que limitaram a celebração deste mês sagrado para os muçulmanos, e esperando que este filme possa contribuir para um conhecimento mais aprofundado do pluralismo religioso em Portugal, aproveitamos para desejar Eid Mubarak para todos/as as/os que o celebram.
Antropólogas, investigadoras do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)