Cimeira Social do Porto: engana-me que eu não gosto

Colocar em destaque nesta cimeira a importância do pilar europeu dos direitos sociais através de um compromisso entre chefes de Estado é um objetivo de enorme responsabilidade política. Mas, atenção: não pode ser só propaganda.

A Cimeira Social do Porto foi útil para quê? Para Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, esta cimeira demonstrou ao mundo que a dignidade e o respeito por cada ser humano são os nossos valores fundamentais.

A Cimeira permitiu demonstrar que este projeto europeu é muito mais do que financeiro ou estritamente económico. A bússola europeia não pode ser só o PIB, tem de ser o bem-estar dos cidadãos. Quem ouve estes senhores ainda acredita que isto é mesmo verdade. O problema são as contradições. Colocar a dimensão social no centro do debate político como primeiro objetivo é bonito. Mas, depois, Nicolas Schmit, o comissário europeu para o Emprego e Direitos Sociais, estraga tudo ao afirmar que integrar os direitos sociais nos tratados é muito difícil e que, no contexto europeu, é muito difícil criar uma carta dos direitos sociais juridicamente vinculativa. 

Então, como é? O PIB, a cumprimento do défice, o crescimento da dívida, esses são vinculativos e são para levar a sério com fortes penalizações para os Estados-membros que não cumprem, e o compromisso de combater a pobreza é remetido para um anexo? Onde está a anunciada ambição social desta cimeira? É desta forma carregada de contradições que querem construir um novo contrato social?

Neste momento, a Europa tem mais de 90 milhões de cidadãos em risco de pobreza. Tem mais de 10% de jovens fora do sistema de ensino e sem integração profissional. É a Europa da desigualdade salarial entre homens e mulheres, é a Europa onde o número de pessoas a viver na rua tem aumentado significativamente. Calcula-se que haja mais de 700 mil sem-abrigo. Esta é a Europa onde existem mais de 18 milhões de crianças em situação de pobreza e exclusão social.

Colocar em destaque nesta cimeira a importância do pilar europeu dos direitos sociais através de um compromisso entre chefes de Estado é um objetivo de enorme responsabilidade política. Mas, atenção: não pode ser só propaganda. Não pode ser uma cimeira social a fingir. Este projeto de Europa, como todos o conhecemos, é caracterizado pelo escandaloso desequilíbrio entre a prioridade dada ao crescimento económico a todo o custo e a atenção dada a medidas que combatam as desigualdades.

Que adianta organizar uma Cimeira Social no Porto se, no dia seguinte, o nosso país vai continuar amarrado a tratados orçamentais e a metas de despesa pública miseráveis por causa da palavra défice?

Que adianta defender condições de trabalho dignas, emprego seguro, salários justos para uma vida decente, se em Portugal cresce o nível de precariedade laboral, nos bolseiros, nos trabalhadores das plataformas digitais, nos estágios, nos contratos a prazo, no trabalho à peça, à hora, onde se praticam salários miseráveis e se ainda não se alteraram as leis laborais do tempo da troika? Tudo isto são leis que o Partido Socialista ainda não se atreveu a mexer por obediência às orientações deste modelo europeu que impõe a austeridade como regra social e o liberalismo como regra económica.

Que adianta defender mais proteção e inclusão social, nomeadamente um rendimento mínimo adequado que assegure a todos uma vida decente, se, depois, na vida real dos portugueses, recebemos pensões de 378 euros por velhice e 189,50 por ser beneficiário de Rendimento Social de Inserção (RSI)? Alguém consegue ter uma vida decente com estas prestações sociais?

Que adianta defender mais investimento na elevação das qualificações e aptidões profissionais dos portugueses se, depois, a maioria dos cursos de formação não servem para nada? Os meus utentes do RSI são bombardeados com o discurso do aumento de competências. Às vezes obrigados a frequentar estas ações de formação. Alguém com este modelo de formação conseguiu emprego digno e com direitos? Sim, alguns. Muito poucos. 

Que proteção social quer esta cimeira afirmar se, em Julho de 2020, existiam em Portugal, registados no IEFP, mais de 636 mil desempregados e apenas 221 mil recebiam fundo de desemprego, ou seja, apenas 35% do total, e que, deste universo, apenas 2% beneficiavam de subsídio social de desemprego por causa da avaliação da sua condição de recursos?

De que adianta defender mais habitação pública se, no Porto, oito em cada dez utentes do Gabinete de Acão Social da Junta de Freguesia de Campanhã vivem em casas precárias ou vão ser despejados por falta de recursos económicos para pagar uma renda compatível com os seus rendimentos?

Que adianta defender mais proteção e inclusão social, com melhores serviços de saúde, se as recomendações europeias e todas as suas diretivas apontam para o travão da despesa pública? Como é possível com este garrote financeiro contratar mais médicos, enfermeiros, auxiliares, equipamentos de diagnóstico e tratamento?

Que adianta ao Governo do Partido Socialista fazer desta cimeira um momento de demonstração de sensibilidade social se, em Portugal, com mais de 98.760 beneficiários de rendimento social de inserção, se recusa a mexer nesta medida para ela ser mais abrangente e eficaz no combate à pobreza mais severa? Trata-se de uma medida ainda muito estigmatizada, burocrática, demorada e muito pouco generosa para quem dela beneficia como esmola.

Que adianta o PS querer demonstrar ao mundo com esta cimeira que a questão social é uma prioridade política do seu Governo, se não avança a rede de creches públicas gratuitas até ao segundo escalão e não aprova a eliminação dos rendimentos dos filhos para atribuir o Complemento Solidário para Idosos?

Em Portugal, a questão social agravou-se muito com a pandemia. Há mais insolvências e desemprego. Segundo dados do IEFP, em Março de 2021 existiam mais 116 mil inscritos do que em Fevereiro de 2020. Os apoios do Estado são insuficientes e tardios. Os serviços públicos, de transporte, de saúde e da Segurança Social atingiram o caos, a desigualdade das condições de aprendizagem das crianças mais desfavorecidas acentuou-se por falta de meios informáticos e de condições habitacionais, de conforto, comodidade e segurança.

Em 2019, segundo um estudo recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, a taxa de risco de pobreza era de 17,2% no nosso país e 21,6% da população vivia em risco de pobreza e exclusão social.

Ainda não temos dados de 2021, mas em 2019 um milhão e setecentos mil trabalhadores auferiam o salário de 505 euros, viviam em situação de pobreza monetária. Ou seja, em Portugal, mesmo a trabalhar, não se consegue romper com o ciclo de pobreza: 13,4% destes trabalhadores são pobres. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), são necessárias cinco gerações consecutivas para esta vulnerabilidade social ser vencida –​ a mobilidade social ascendente está congelada. O elevador está avariado para os que não têm acesso aos principais recursos, escolares, sociais, culturais, simbólicos e económicos.

Por tudo isto, o projeto de Europa que os pobres reclamam não pode ser confundido com o modelo que estes senhores discutiram no edifício da Alfândega do Porto.

Os pobres anseiam por uma cimeira que defenda o pleno emprego com direitos, a valorização salarial, a contratação coletiva, a erradicação da precariedade e da pobreza. A nossa ambição não é diminuir a pobreza. É erradicá-la. Porque, com vontade política, isso é possível e está ao nosso alcance.

A nossa cimeira é pela regulação dos horários de trabalho, pela defesa e reforço dos serviços públicos, nomeadamente no acesso à saúde, à habitação, à educação e segurança social, à cultura e ao desporto, pela criação e expansão da rede pública de cuidados a crianças, jovens e idosos com deficiência.

É por esta via que se assegura que ninguém fica para trás

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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