Bloco de Esquerda e feminismo, um difícil equilíbrio

A atitude da direção do BE diz implicitamente às suas aderentes que o partido não é lugar seguro para elas e que tudo será tolerado até que o processo corra em trânsito e seja julgado.

A onda de revelações de assédio sexual, assédio moral e violências física e psicológica denunciadas por mulheres famosas, nas últimas semanas, reacende em Portugal um debate que ainda ressoa como um tabu numa sociedade que guarda muitas marcas do conservadorismo e paternalismo da sua história. O tema não é novidade para a maioria dos partidos políticos. Faz algum tempo que este ganha relevo em discursos eleitorais, propagandas partidárias e até em alguns movimentos estudantis e anarquistas – que agregam jovens de classe média, suportados num discurso feminista “progressista”.

O discurso frágil, instrumentalmente identitário e carente de engajamento em grupos de base populares, além de enfraquecer a luta, tenta reduzir o feminismo a um mero espaço de disputa por grupos e partidos. Essas dicotomias, defrontadas com a importância da pauta feminista na ideologia política de esquerda –​ que é o lugar onde historicamente se alicerçam suas lutas e conquistas –, evidenciam a urgência desse campo político ultrapassar o medo do confronto com suas próprias contradições que minam o muito que já se conquistou e o tanto que ainda falta.

Na última semana, uma denúncia de violência no namoro feita pela ex-companheira de um dos parlamentares jovens mais proeminentes do Bloco de Esquerda reacendeu o debate sobre a postura que os partidos políticos de esquerda devem ter diante de acusações graves e ideologicamente inaceitáveis no seio do seu partido. É notável a disputa de narrativas na opinião pública feita por alguns aderentes do Bloco que atacam a denunciante: discursos que vão desde acusações de manipulação pela extrema-direita, até uma suposta instrumentalização oportunista de outros partidos de esquerda sobre o caso.

Diante da denúncia, a direção do Bloco de Esquerda retira de si a responsabilidade e evoca a justiça como autoridade máxima no caso. Justiça essa que, noutros casos, corretamente denuncia como algoz na luta das mulheres, especialmente quando os casos de violência não envolvem os seus membros diretivos. Um partido deveria saber lidar de maneira coerente e frontal com uma das pautas que encabeça. Com uma direção liderada por mulheres, olha-se para o lado, através de um  identitarismo que prova que a resposta só é dada quando há conveniência. Evita-se o debate e dá-se assim oportunidade para que as contradições ganhem relevo em discursos reacionários que atingem verdadeiramente as vidas de todas as mulheres, mas sobretudo as mais precárias.

A atitude da direção do BE diz implicitamente às suas aderentes que o partido não é lugar seguro para elas, que tudo será tolerado até que o processo corra em trânsito e seja julgado. Para além do caso exposto, denúncias de assédio moral, humilhações e intimidações, que perpassam a lógica paternalista de concelhias e distritais do partido, em vez de confrontadas e expurgadas de suas práticas, são silenciadas como se fosse possível abafar o mau cheiro que exala do esgoto.

Se não se trata de evocar um linchamento público e fazer justiça com as próprias mãos, também não se trata de lavar as mesmas e evitar enfrentar de forma coerente as contradições internas dos partidos de esquerda. Se não se trata de julgar alguém culpado antes de uma apuração mais cuidadosa dos factos, também não se trata de dar apoio em redes sociais a este e pôr a idoneidade da suposta vítima à prova antes de o caso ser apurado. Pois ser-se feminista não consiste em uma defesa abstrata das mulheres, mas sim em combater narrativas que evocam discursos vexatórios que legitimam a violência e culpabilizam as mulheres – essas práticas conhecidas no seio das sociedades liberais capitalistas não devem ser reproduzidos exatamente no espaço que as deveria combater.

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